sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Pra ela, a cabeceira


Avô torto mesmo só por uma questão de destino. Não era o pai biológico da mãe da menina. Mas isso era compensado com uma retidão, não feita com régua, dessas calculadas milimetricamente e cheias de artificialidade. Uma retidão construída pelo esforço, à base de paciência, dificuldade. Trabalhando na mercearia tentava manter uma ordem invejável, prateleiras limpas com as latinhas de azeite viradas na mesma direção. Os tomates recebiam tratamento especial e iam para a banca enfileirados um a um. Além de rígido com a organização, não abria mão de certos rituais. O domingo era feito para acordar cedo e fazer o tempero do almoço. Entre os exageros, a variedade de condimentos. Cebolas picadas em rodelas grandes, ramos fartos de salsa e coentro, pimentão até falar chega. E quando falava chega, colocava mais um pouco para finalizar. 

Todos degustavam a carne, feita semanalmente do mesmo modo, sentados à mesa. Alguns até queriam comer vendo televisão, mas cadê a coragem? O avô torto/reto falava com os olhos, e esses diziam com muita clareza: almoço é para reunir a família. Lugares bem definidos. E a cabeceira da mesa, aquele senhor, sem nunca ter dito o motivo, reservava para a esposa. Tudo isso a menina conhece de ouvir as histórias que ninguém esquece. O tempo roubou o privilégio desse encontro. Só o viu por foto. Com o avô aqui, não teria essa de celular ao lado do prato, muito menos envio de mensagem entre uma garfada e outra. Mas as coisas poderiam ter um tempero diferente.  

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Roupa de domingo


A camisa só poderia ser uma. Lavada a mão, não merece o mesmo destino de tantas outras, da meia suja, da calça desbotada, do pijama verde de ursinho. Tudo vai pra máquina. Ela já ganha sabão neutro, seca à sombra apenas com o carinho do vento. Dá trabalho, mas a menina nem liga. Até gosta. A vestimenta não obteve seus contornos com seda, chiffon, tule ou outros desses tecidos bacanas que dançam nos bailes de formatura, casamentos e aniversários de 15 anos. 

Longe dessa elegância toda, a camisa, ao contrário, deixa a menina com “jeitinho de menino”, daqueles que esfolam o joelho sem medo na infância. Dizem que é feita com material que ajuda a drenar o suor, mas pouco importa. Antes de mais nada, é linda. Roupa de domingo, principalmente, e das quintas e sábados, mesmo sem aparentar um traje dos mais femininos. Larguinha, já beijou o chão inúmeras vezes a cada tombo, falta de jeito da jogadora adversária ou empurrão bem arquitetado. Chega o fim de semana e a menina procura ansiosa por ela no guarda-roupa. Tem pressa de gritar gol e brincar de ser feliz. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Até acertar na mosca


Se o ângulo não estiver certo e a força na medida exata, não há boa vontade que dê jeito. Não pode faltar nada, muito menos fugir um milímetro do lugar. Ai que mora o problema. Tudo parece mais fácil quando o resultado está apenas nas mãos da dedicação. Ou você quer ou não quer. Mas, na maior parte dos casos, a participação dela parece muito pequena. Já combinar as outras coisas depende de muita experiência e de toda a sorte que aparecer: errar muito, ir errando menos, cometer pequenos enganos, leves deslizes até acertar 100%. 

E como é ruim ver que escapou. Pior ainda depois de tantas tentativas. Parece mais uma oportunidade que se foi, única e infinitamente melhor do que todas as que se passaram e as demais que estão por vir. Tudo em um instante. Agora a menina trocou o taco e não exagera mais na quantidade de giz. Enquanto espera o estrago que fará o seu oponente, não sabe se vale a pena arriscar na caçapa da ponta. A ansiedade faz pensar em como agir antes mesmo de chegar a sua vez. Vai que tudo muda? Melhor esperar. E como é ruim. Continua tentando da melhor forma. Isso não é só sobre sinuca.  

domingo, 29 de junho de 2014

Tá devendo?


Um casal chega na sala de espera e a menina mal observa. Tenta se distrair com uma revista velha de fofocas. A capa e o miolo já se separaram faz tempo, assim como a atriz e o cantor que são destaque na reportagem principal. Para manter unidas as partes da publicação, a secretária da médica já tentou cola, fita crepe e durex. O êxito de cada um desses recursos durou pouco. Já as celebridades da foto de casamento insistiram bem menos e se arrumaram cada uma em um novo caso. Como as notícias daquela revista de notícias não têm mais nada, a televisão desvia o olhar da menina. Mas não consegue fazer o mesmo com a audição. Som alto em consultório não dá. Só que também devia ser proibido colocar a TV no mudo e se servir daquelas legendas eternamente atrasadas. 

O casal sentado ali na esquerda, de tão discreto, chamou a atenção. Encontram para passar o tempo a companhia um do outro. Ele fala com voz suave, mais por se dirigir à namorada do que pelo silêncio que o local exige. Faz um relatório completo sobre como foi o dia, sem deixar escapar a quantidade de comida que esteve no prato durante o almoço. Dizer com quem almoçou, para quem deu carona e com quem conversou parece muito relevante enquanto usa a ponta do dedo para definir, ainda mais, os cachos da namorada. Entre beijinhos que produzem estalos quase imperceptíveis, o garoto retira da mochila um pacotinho de chocolate daquele bem vagabundo. Baratinho mesmo. Come um pedaço e leva o seguinte para a boca da namorada que aceita com jeito de quem merece o agrado. A conversa segue. Será que o moço andou fazendo algo de errado?

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Para mais ou para menos


O barulhinho da chapa quando a concha despeja o líquido que em breve será promovido a massa. Um pouco de leite, outro tanto de farinha e um algo mais que a menina não sabe o que é. Nem faz ideia, mas isso não importa. Com um instrumento metálico e movimentos que parecem displicentes e ao mesmo tempo cheios de alguma técnica simples, já treinada exaustivamente, ele ganha forma. Ah, o crepe. Aquela senhora de gorro branco na cabeça pensa inocentemente que está apenas fazendo o trabalho de todo dia, um crepe seguido de outro, enquanto sonha com o bendito fim do mês. Como subestima o seu ganha-pão!   

A menina vê outra coisa. Esperou por aquele momento durante três dias. Imaginou com ansiedade a hora de sentir o gosto daquela receita feita assim, tão rápido. E pôde apreciar, praticamente de camarote, cada segundinho da trajetória da massa, das fartas colheres de creme de avelã que envolviam as rodelas de morango como em um abraço carinhoso formando o recheio. “É para comer aqui ou para levar?” A senhora de gorro branco na cabeça precisa saber. Do prato para a boca, o sabor se perdeu. Não era nem de longe como o esperado. Pode ser culpa da expectativa ou o crepe ficou um tempinho a mais ou a menos no fogo. As vezes a espera é mesmo muito melhor. A menina bem sabe.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Descompasso


De uma hora pra outra, o garoto virou caranguejo. Não que se trata-se de um personagem daqueles do Realismo Fantástico. Apenas decidiu, metaforicamente, não andar mais para frente, optando pelos movimentos laterais. Vulgo, sair pela tangente. O desejo era caminhar definitivamente para trás, mas faltou coragem. O motivo: a menina que o acompanhava naquele curto percurso só queria ver o que existia adiante. Com a demora em ser avisada, ambos protagonizaram uma dança que até os mais bêbados fariam de modo menos desajeitado. Ela para frente e ele para o lado. E não haveria tecnologia da Nasa, iguarias italianas ou poção mágica para mudar a trajetória de cada um. 

Entre palavras rebuscadas e grandes delongas o menino parou e decidiu fazer o que realmente queria. Foi honesto? Será que foi honesto? Apenas uma imposição das circunstâncias. Vai ver estava tonto com o descompasso que ele mesmo criou. Dá trabalho seguir adiante. A menina até se submetia a andar em círculos eventualmente, mas para trás nunca. Questão de princípios. Desde então, foi convidada a dançar sozinha, o que parece difícil só que permite reinventar os passos e errar sem se sentir ridícula. Basta disfarçar fingindo que criou uma coreografia nova. Pra completar, ainda dá pra fugir da dependência de quem não sabe dançar.  

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Um “m” torto


Quando bem pequena, lá na escola, a menina descobriu que tinha um problema na mão direita. Nada muito grave. Apenas um defeito, percebido durante uma brincadeira  daquelas de roda. É que toda mão tem umas linhas mais grossinhas na palma organizadas em forma de “m”. No caso da menina, veio errado. Os traços se enroscaram aparentemente gerando um esquisito “A”, sem o risco do meio, ou, com muito boa vontade, alguém poderia enxergar um “m” torto, daqueles que se escreve nos primeiros anos rumo à alfabetização. Essa observação, bobagem de criança, parecia trazer implicações que levariam à loucura os maiores especialistas em Quiromancia. 

Logo na mão direita, aquela vista como a principal! O mal formado “m” gerou inocentemente as mais variadas interpretações. Se aquelas linhas seriam o indício do que viria pela frente, só restava esperar por um caminho na vida tão estranho quanto elas. Aos mais otimistas, o significado remetia a um sucesso diferenciado. O “m” não saiu da mão e povoava também a cabeça da menina. Poderia ser a explicação para os amores confusos que viriam, habilidades precoces, oportunidades tardias e tudo mais que foge do convencional. Se bem que problemas com o amor e as expectativas dribladas pelo acaso sempre foram reclamações coletivas. Então, pra quê um bendito “m” com jeito de “A”? Qual a serventia? A menina ainda não foi esperta o bastante para saber. Mas em todo caso ainda perde tempo com bobagens de criança.