sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Pra ela, a cabeceira


Avô torto mesmo só por uma questão de destino. Não era o pai biológico da mãe da menina. Mas isso era compensado com uma retidão, não feita com régua, dessas calculadas milimetricamente e cheias de artificialidade. Uma retidão construída pelo esforço, à base de paciência, dificuldade. Trabalhando na mercearia tentava manter uma ordem invejável, prateleiras limpas com as latinhas de azeite viradas na mesma direção. Os tomates recebiam tratamento especial e iam para a banca enfileirados um a um. Além de rígido com a organização, não abria mão de certos rituais. O domingo era feito para acordar cedo e fazer o tempero do almoço. Entre os exageros, a variedade de condimentos. Cebolas picadas em rodelas grandes, ramos fartos de salsa e coentro, pimentão até falar chega. E quando falava chega, colocava mais um pouco para finalizar. 

Todos degustavam a carne, feita semanalmente do mesmo modo, sentados à mesa. Alguns até queriam comer vendo televisão, mas cadê a coragem? O avô torto/reto falava com os olhos, e esses diziam com muita clareza: almoço é para reunir a família. Lugares bem definidos. E a cabeceira da mesa, aquele senhor, sem nunca ter dito o motivo, reservava para a esposa. Tudo isso a menina conhece de ouvir as histórias que ninguém esquece. O tempo roubou o privilégio desse encontro. Só o viu por foto. Com o avô aqui, não teria essa de celular ao lado do prato, muito menos envio de mensagem entre uma garfada e outra. Mas as coisas poderiam ter um tempero diferente.