domingo, 29 de janeiro de 2012

Como carregar um presente



Uma mulher estava na rua com uma daquelas roupas de escritório. Terninho escuro, sapato de salto alto, solado vermelho e bico fino, lenço em cores discretas no pescoço. Nas mãos, um bouquet de rosas vermelhas enorme. No rosto, uma expressão que não dizia nada. Era normal. Nada de alegria, nem de tristeza, não tinha o peso do cansaço ou a leveza de estar de férias. A menina logo viu a cena e pensou: “Que isso minha filha! Você está com um bouquet nas mãos! Isso não é cara de quem carrega um bouquet!” A garota esperava que a mulher estivesse andando na rua com passos leves, um sorriso discreto daqueles que parecem ter vontade de crescer e ficar enormes de tanta felicidade. Cabelos ao vento e segurando as flores com delicadeza e ao mesmo tempo força como se não quisesse que elas escapassem. A menina ficou imaginando que provavelmente aquele seria o presente de um cara super bonito e apaixonado como dos filmes e novelas. E que possivelmente teve a ideia do presente inspirado numa comédia romântica que foi ‘obrigado’ a assistir enquanto ele e a mulher estavam abraçados no cinema. 

Enfim, ela pensou em todo um contexto romântico para justificar a existência das rosas. Talvez porque era aquele cenário que a menina queria para ela mesma, mas claro que com algumas mudanças. Não estaria de salto alto porque é uma dessas pessoas que nasceu sem a classe daquelas que usam esse tipo de calçado como se estivessem descalças desfilando na areia da praia. Também não estaria vestida em uma roupa social, já que ela morre de calor quando precisa usar e fica muito esquisita. Parecendo que a roupa se move sozinha pendurada num cabide. Talvez fosse andando em uma praça com sandálias bem baixas e um vestido fresquinho desses pra usar no verão. E ela ia manter um sorriso bem grande a ponto de as pessoas olharem pensando que a menina é doida, afinal, a vida não é assim tão boa pra merecer um sorriso daqueles. E a garota não ia abrir mão de receber o presente de um cara bacana e super apaixonado, desses que não existem na vida real. Ela não ia abrir mão mesmo!       

domingo, 22 de janeiro de 2012

Quando ele vai embora



Ela descobriu a grande vantagem do horário de verão. Aliás, a única. Que supera a dificuldade em acordar cedo e a sensação de que o dia passa rápido demais. É a possibilidade de sair do trabalho e ver um restinho de sol no final do dia. Se bem que nem é o restinho do sol, é o melhor do sol, o pôr do sol. A garota passou a vida inteira fascinada com esse momento, quando os raios vão ficando mais leves, de outras tonalidades e se escondendo entre nuvens, árvores e montanhas. Em cada viagem ou num simples passeio ela não se continha até guardar aquele momento só para ela, tirando uma foto. Tudo porque ele tem aquela beleza meio melancólica de mais um dia que se foi. Das coisas boas que ao anoitecer já se tornam passado e daquelas que não aconteceram e ficarão na lista de sonhos não realizados.

O pôr do sol ainda carrega a paz de um silêncio bom e a vontade de ficar olhando sem pensar em nada e pensando em tudo ao mesmo tempo. Certo dia, ele trouxe para a menina um presente maravilhoso, aguardado por anos, e que foi despedaçado em um meio de tarde de sol forte. O fim de tarde também lembra tomar sorvete vestida de short e camiseta sem pressa de chegar em casa. A garota admira tanto o poder do pôr do sol que já se permitiu ficar olhando para ele em cima de um viaduto sem se preocupar com assaltantes, carros desgovernados e pessoas malucas. Ele tem a pureza e a elegância de quem chega na hora certa, sabe o tempo exato de ficar e vai embora deixando claro que não é um abandono. Sempre volta.        

domingo, 15 de janeiro de 2012

Arrumar os seis lados



Ela ganhou um cubo desses de seis cores diferentes, uma em cada face, que você tem que embaralhar e conseguir organizar de novo. O famoso ‘Cubo mágico’. Coisa muito complicada. O objeto sempre foi do interesse dela e mesmo sendo tão barato a garota nunca se mobilizou para fazer a compra. Talvez seja mais uma dessas coisas que a gente quer e esquece que quer com a mesma intensidade. Daí só sente vontade quando vê por perto. E cinco minutos depois já caiu no esquecimento. É como a bolsinha colorida que ela vê na vitrine de uma loja perto do trabalho todos os dias. O dinheiro está na carteira, mas nada de sair de lá para a tal bolsa passar a ser dela. A menina não entende porque ainda não comprou e independente disso o objeto continua no mesmo cantinho, até que a vendedora resolva deixar escondido em uma outra prateleira ou alguém compre. 

Algo parecido com o filme ‘Kung Fu Panda 2’. Ela fez contagem regressiva para que ele chegasse ao cinema. Com o filme em cartaz, passou semanas planejando que iria assistir. Arrumou alguém que queria muito ir também, mas o passeio nunca aconteceu. Voltando à história do cubo, ele entrou na vida da garota de forma meio obrigatória. Ela não fez grande esforço, aliás, não fez esforço nenhum. Não planejou, não pediu a aprovação de ninguém nem definiu quando ele iria chegar. Mas o fato de não ter tido trabalho para a chegada do cubo não diminuiu sua complexidade. As cores continuam lá da mesma maneira só que agora inevitavelmente embaralhadas. E a dificuldade de estabelecer a ordem anterior entre elas é enorme. Por mais que se esforce, apenas um dos lados consegue ser o que era, enquanto os demais ficam ainda mais bagunçados. Sofrido também é saber que existem apenas duas alternativas: se contentar com o único lado que conseguiu arrumar ou ver ele sendo desconstruído quando tenta organizar tudo. Parece que ela já viu esse filme antes...         

domingo, 8 de janeiro de 2012

Fechar com chave de ouro



Era o último dia útil do ano. A menina saiu de casa para trabalhar às 7h30, mas a chuva já tinha começado seus trabalhos fazia um tempão. Parecia que tudo que estava nas ruas sentia certa inveja das nuvens e acabava jogando água em quem passava. Os carros e motos fizeram qualquer guarda-chuva se sentir inútil por não dar conta do que vinha de baixo e até dos lados. Falando nisso, em alguns momentos era até possível ver chuviscos cruzando o ar na horizontal, provando que nesses tempos malucos falar em chuva vindo na vertical não é algo tão obvio. Quando a garota chegou ao ponto de ônibus, encontrou alguém completamente encharcado. Ele não estava molhado porque a sombrinha não deu conta do recado ou esqueceu a capa de chuva em casa. Aliás, nem casa ele tinha. O cachorro preto, de pêlo brilhante por causa das gotas mantinha a boca aberta: mistura de sorriso com dentes faltantes e a língua de fora que sugeria cansaço. O rabo que não parava de balançar e os pequenos pulinhos que dava ao olhar para quem esperava o coletivo pareciam indícios de uma alegria misturada com espera. Uma espera bem esperançosa. 

Talvez o senhor que estava com o jornal nas mãos ou a mulher de botas bonitas pudesse ter um cantinho seco em casa para um cãozinho preto ficar. Os olhares constrangidos indicavam gente que não gostava de bicho e, por isso, queria ver aquele animal bem longe. Outros se sentiam incomodados por não poder fazer nada para ajudar. A menina se sentia angustiada já que a impossibilidade de proteger o cachorro da chuva, da fome e de outros perigos da rua se misturava às outras angustias que ela carrega na vida. Em meio ao silêncio constrangedor, uma senhora retirou da bolsa o sanduiche que seria o lanche da tarde e entregou a aquele focinho abandonado. Um gesto pequeno, simples, mas agradecido com a grandiosidade de um olhar aliviado por satisfazer o estômago.  A garota também não resistiu e agradeceu à senhora, que ficou sem entender. A menina estava contente não apenas porque algo tinha sido feito por um ser tão frágil. A gratidão era também por ter encontrado uma pessoa de coração bom.