sábado, 31 de dezembro de 2011

Depois da queda vem...



Tudo começou com um “Tudo bem”. A mentirosa frase dita e repetida tantas vezes a ponto de convencer muita gente de que era verdadeira. Só não conseguiu se mostrar da mesma maneira para quem pronunciava aquelas palavras. A menina nunca acreditou embora passasse a vida dizendo e dizendo de novo. E como mentira tem perna curta, essa daí tropeçou na primeira pedra mais gordinha que encontrou pela frente. De forma inexplicável, nada aconteceu com os joelhos da mentira, até porque a garota é que foi ao chão. Os dela sim é que ficaram ralados. E como demorou até aparecer alguém para colocar Merthiolate, soprar as feridas e fazer carinho dizendo que tudo iria passar. Com os joelhos já cicatrizados, ela se deu conta de que, com a queda, o estômago também havia se ferido de uma maneira bem profunda. Nem sopro nem carinho iam dar jeito. 

Quando não havia mais nenhuma maneira de disfarçar a dor, encontrou um desconhecido vestido de branco e com um objeto, meio parecido a uma corda, pendurado no pescoço. O rapaz tratou de dizer que para as coisas melhorarem ela deveria querer muito e se esforçar. De imediato ela não entendeu nada. Parecia obvio demais que a garota queria consertar o estômago, mas a coitada não fazia ideia sobre esse papo de esforço. Será que ele estava falando de ficar sem comer batata frita, bacon e sorvete? Tomar xarope com gosto ruim ou chá de boldo? Levantar peso? Percorrer grandes distâncias? Nada disso. Depois de meses ela entendeu que os maiores desafios dessa vida não estão em suportar grandes desconfortos, mas em mudar pequenas coisas. Elas exigem atenção demais aos detalhes, a força de se assumir fraco e a coragem para jogar fora aquilo que, aparentemente, não deseja perder. Parece que a menina está indo bem. De vez em quando ela ainda tropeça, mas logo dá um jeito de limpar a roupa e levantar como se nada tivesse acontecido. Em seguida, inevitavelmente acha graça e segue rindo por ai. 

domingo, 25 de dezembro de 2011

As intenções



Ela ganhou de presente dois livros: um que ensina a ter uma vida mais leve e outro que promete acabar com essa história de amores mal sucedidos. Parecem bons presentes, afinal livros são sempre legais, mas o que está por trás da entrega de um presente? Na prática, ninguém se preocupa em dar um embrulho bonito e um objeto escolhido com cuidado a alguém de quem não gosta. Quanto a isso não há dúvidas. Mas a garota ficou pensando o porquê de serem aqueles livros e não outros. Talvez um de aventura, um de comédia, uma biografia ou mesmo um de receitas. Sei lá. Na hora de receber os presentes, a gratidão e, em alguns casos a surpresa, tomam conta de tudo. O cheiro de páginas ainda não lidas, a textura da roupa que nunca foi usada e o sabor do primeiro bombom retirado da caixa preenchem o momento. Só que a menina não conseguia parar de pensar nos livros. 

O vestido novo e o chocolate voltaram para os papéis de presente, coisa que ela sempre fez tradicionalmente para ter o prazer de desembrulhar mais uma vez. Os livros ficaram ali nas mãos. Não que eles tenham maior ou menor importância, mas era impossível para ela não se ver refletida neles. Principalmente porque foram comprados por alguém tão próximo. Era constrangedor e, ao mesmo tempo, um alívio saber que alguém via o que estava acontecendo com ela. Eles eram uma forma sutil de dizer que os olhos da menina contavam do peso do cansaço e da dor de mais um fracasso. A garota retribuiu a gentileza com um abraço e começou a leitura de imediato. Achando que ali encontraria as respostas que procura. Mesmo sabendo bem que as respostas não estariam naquelas letras. Seriam no máximo pistas, ou nem isso.  Por estranho que possa parecer, alguém já tinha contado à menina onde estava o que ela tanto procurava. Faltou dizer onde ela pega o visto, o passaporte e as passagens para viajar até lá.

sábado, 17 de dezembro de 2011

25 de dezembro


Ela passou na porta da loja e não resistiu. Ah que vontade de comprar! Viu um pinheiro de natal de dois metros de altura todo decorado. Parecia um daqueles das casas das Helenas nas novelas do Manoel Carlos. (Aqui não farei a piadinha de que o autor lembra o bom velhinho) Na árvore, as bolinhas todas vermelhas e de vidro como as de antigamente. Nos sinos dourados, bastava encostar bem de leve para escutar aquele barulhinho inconfundível. Os laços de fita e caixinhas decoradas disputavam, gentilmente, espaço com anjinhos, papais noéis e outros enfeites ricos em detalhes. Infelizmente quem não era rica era a menina. O objeto tão desejado não cabia nem no orçamento nem no pequeno apartamento alugado. Voltou para casa com algumas poucas sacolas. Dentro de uma delas, um pinheirinho de 50 cm. Incomparavelmente menor que a animação da garota com decorações para o fim de ano. 

E esse nem foi um problema. Afinal, a árvore foi enfeitada com muito carinho e bom gosto. Ela mesma escolheu onde seria pendurada cada coisa e passou um bom tempo na loja até encontrar cores, texturas e formatos de acordo com seu estilo. Tudo preparado para ela, parecido com ela! Ao final, faltava colocar na ponta a estrela, brilhante e imponente a ponto de pretender transmitir a mesma beleza daquelas que enfeitam o céu. Embaixo da árvore, um presépio quase tão simples quanto a cama improvisada que recebeu aquele menino no dia 25 de muitos anos atrás. E bem do lado a garota colocou umas caixinhas de presente. O perfume que estava precisando, um pijama para substituir aquele que já estava velho demais e uma caixa de bombons. Coisas simples compradas para ela mesma, que seria a única pessoa a passar a noite de natal ali. Os amigos estariam ocupados demais com as famílias. E a família dela, muito longe, não apenas fisicamente. Mesmo sozinha, acendeu velas e preparou uma ceia caprichada. Ali ela entendeu que a história de que é ruim cozinhar para uma pessoa só, é mentira. Ás vezes a gente pode ser mais especial que uma multidão.     

domingo, 11 de dezembro de 2011

A reta final


Ela está ficando velha. De verdade. E não é porque chegou mais um aniversário. Até porque, para o bem ou para o mal, ainda falta quase um ano inteiro até se aproximar a tal data tão temida quanto esperada. O problema é que ela sente dor nas costas. E mesmo passando mais de 8 horas por dia sentada em frente ao computador ela jura que o motivo não é esse. Atribui à velhice cada dorzinha na hora de caminhar e pegar objetos do chão. Além de perder um pouco do preparo físico, a paciência está indo embora, com uma velocidade tão grande quanto aquela que a menina conseguia atingir há tempos atrás. Os problemas não são as filas dos bancos, os atrasos dos ônibus nem a lerdeza da internet. Ela está cansada de aguardar a sua vez de realizar os sonhos que já deixaram de ser sonhos para um monte de gente. Está impaciente com pessoas insistentes em dizer que a hora certa vai chegar. E como a reta final se aproxima, também quer respostas mais imediatas e, ao mesmo tempo, sente saudade de quando apenas vivia guardando a ilusão de que elas um dia viriam. 

As piadas viraram um assunto complicadíssimo. São machistas demais, preconceituosas demais, pornográficas demais, adolescentes demais, infantis demais ou sem graça demais. Parece que o contexto de cada uma delas ficou meio separado do tempo em que a menina vive. Também perdeu o gosto e a vontade de experimentar o novo. As músicas preferidas que o digam. São ouvidas a exaustão na mesma sequencia que já foi decorada sem maiores dificuldades. E não há espaço para conhecer os lançamentos. Pelo menos de falta de memória ela não sofre, o que para algumas situações nem chegaria a ser exatamente um problema. Com as habilidades intelectuais não atingidas de forma drástica pelo tempo, isso pode ser um indício de que a tal sensação de velhice não passe de uma fase de mau humor ou de descrença nas coisas da vida. O correr dos dias deve trazer ao menos essa resposta, ou não. Pelo visto, terá que se virar sozinha para descobrir isso também.            

sábado, 3 de dezembro de 2011

Quando virou joaninha


Uma capa vermelha com bolinhas pretas. Na cabeça, um cabelo muito bem preso com o apoio técnico de um gel desses que deixam os fios grudados como gêmeas siamesas. Para completar, um arco com duas anteninhas, colant preto e sapatilha. Era uma fantasia de joaninha para o baile de carnaval da escola. A menina tinha naquela época seus sete anos, e estava feliz com a roupa apesar do medo da reação dos outros. Depois de uma conversa com a mãe, sempre habilidosa na arte do convencimento, a garotinha tomou coragem para sair de casa. Um vizinho logo elogiou, dizendo que estava bonita. Ela ficou com vergonha, mas o comentário ajudou a impulsionar os passos lentos, medrosos e com vontade de nunca chegar, até a porta da escola. Entre piratas, bailarinas e fantasias que ela nunca entendeu do que se tratavam, surgiu a joaninha. Ficou quietinha ao lado da irmã que só esperava a abertura do portão para ir embora. De repente, a menina percebeu alguns dedos apontados em sua direção. Uns acompanhados de risadas e outro, em especial, carregava consigo uma gargalhada cruel e o comentário que nunca foi esquecido: “Parece o Chapolin Colorado!”. 

A reação foi imediata. Provavelmente uma pessoa nunca se encolheu tão rápido quanto ela. Ficou ali bem pequena, bem diminuída, quase do tamanho de uma joaninha de verdade. Só que joaninhas não choram, muito menos pedem à irmã, desesperadamente, para levá-la correndo pra casa. Com o pedido atendido, foi para o quarto gastar todas as lágrimas que tinha direito. O colo de mãe e os argumentos de sempre convenceram a menina a voltar para a festa. Só que já não adiantava mais. Não seria como antes. Quem voltou para a escola não foi a joaninha, era apenas uma menina de camiseta rosa, bermuda jeans e olhar triste. A condição para sair do quarto não poderia ser outra, jogar de lado a fantasia. No meio de palhaços, mágicos e florzinhas, voavam confete e serpentina por todos os lados. Até mesmo no canto onde a menina se refugiava. Só que por lá eles chegavam e perdiam a cor imediatamente. Enquanto isso, ela aprendia que não seria nunca mais uma joaninha.