domingo, 26 de fevereiro de 2012

Não apenas pelo livro



Correu desesperadamente e não conseguiu chegar a tempo. E como é frustrante o esforço sem o resultado esperado. Dá uma sensação estranha de raiva misturada com o cansaço e a impressão de não poder resolver as coisas. Pode parecer um draminha bobo, mas foi exatamente assim que a menina se sentiu. Ela precisava atravessar a cidade em 30 minutos para comprar um livro com urgência e acreditou que seria capaz. A meta ousada dependia de muitas coisas. Da força física para correr depois de um dia cansativo de trabalho, da pontualidade do ônibus, que sempre atrasa, e que o trânsito de fim de tarde de uma sexta-feira resolvesse promover uma grande mudança no visual engarrafado de costume. A garota fez a parte dela mesmo quando o fôlego já ia avisando que iria embora. A garganta seca começou a reclamar e a voz, para não ser obrigada a escutar reclamação, sumiu. Ônibus e trânsito não fizeram a parte deles e a menina chegou quando a porta da livraria já estava descendo até fechar completamente para dar descanso a quem trabalha lá dentro. 
    
Ela foi voltando para casa lentamente já que não havia solução. Até procurou em outros lugares, mas o livro só existia na tal livraria de portas fechadas. Ah se a Araújo cumprisse mesmo aquele velho slogan... Mas a solução não estava nem numa farmácia nem em uma livraria 24h. E o problema muito menos estava dentro da menina. De certa forma, até que estava, mas não da maneira que ela imaginava. Acabou correndo e correndo, no dia seguinte, e conseguiu finalmente comprar o livro. Prova de que até as coisas mais triviais tem o seu tempo certo. Não adianta. Por mais que quisesse, nunca teve nem nunca terá o poder de controlar o trânsito, o ônibus, o tempo, o clima. Mal dá conta de controlar o que está dentro dela. Também precisa entender que tem hora que a única opção é esperar. E ter a classe de aguardar como se deve: com tranqüilidade, a cabeça voltada não para o solo, mas para a linha do horizonte e a alegria de se divertir enquanto isso.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O som do silêncio



Quando era criança torcia para não ser a última a dormir. Só a possibilidade de ficar no escuro acordada e sem ninguém para conversar deixava a menina assustada. Sem falar naquele silêncio esquisito que era invadido pelo barulhento ponteiro do relógio. Aquele pedaço fino de metal que se mantinha discreto durante o dia e escandaloso na madrugada. A imaginação resolvia ficar descontrolada com as luzes apagadas, daí era inevitável confundir um grande amontoado de roupas com um gorila. E é fácil entender o tipo de estrago que isso fazia em uma criança que morria de medo do King Kong. A coitada se encolhia debaixo do cobertor com a cabeça coberta. Acreditava que assim ficaria invisível para o macaco gigante e rezava para não precisar ir ao banheiro ou buscar um pouco de água.

Passados alguns anos, a menina inevitavelmente virou a última pessoa da casa a pegar no sono. Também é a última a chegar em casa e a jantar. E isso nem faz tanta diferença. O grande gorila das telas de cinema já não visita mais os pensamentos e, embora o quarto ainda abrigue uma pilha de roupas, é impossível não enxergá-la apenas como uma pilha de roupas. A imaginação já não fantasia a existência de um inimigo mirabolante, está bem ocupada revirando problemas, obrigações, medos e inseguranças da vida real. E no mesmo ritmo o estômago vai se agitando numa demonstração que infelizmente não é de fome. Se fosse assim seria simples já que a garota não se sente mais apavorada ao caminhar até a cozinha na madrugada. Para ela, durante a noite tudo parece mudado, menos o barulho do relógio no silêncio. Até sente saudades do tempo em que o King Kong era a única preocupação.      

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Hoje tem palhaçada!



Depois de crescida, ela resolveu ir ao circo. Um passeio desses que toda criança fez ao menos uma vez na vida. Toda criança, menos aquela garota. Os anos se passaram e ela ficou acostumada a ouvir falar que no circo tinha elefante, leão, gente cuspindo fogo e engolindo espada. Viu pela televisão como eram os palhaços e, para ser bem honesta, nunca entendeu porque as pessoas riam deles. Sapatos enormes, cabelos bagunçados, roupas coloridas, cara pintada e nariz vermelho. O que que isso tem de engraçado? A garotinha virou uma jovem e a duvida persistiu. Passou a ter pena daqueles que precisavam se vestir de palhaço para ganhar a vida enquanto as pessoas retribuíam com risadas constrangidas, afinal, era preciso achar graça. Sentia desprezo dos tantos palhaços que recebiam esse título sem precisarem de fantasia, apenas cruzando a vida das pessoas sentindo o prazer de fazer pequenos estragos enquanto os outros sofriam porque era o que se poderia fazer.  

Talvez o único encanto circense capaz de despertar a atenção da menina fosse a leveza dos artistas com poderes de mover o corpo para onde quisessem e sem o menor problema. Se para alguns pode parecer nojento colocar o calcanhar na nuca, para ela isso é mais mágico do que tirar coelho de cartola. É a possibilidade de ter controle sobre si mesmo no sentido mais amplo. E como seria belo caber dentro de uma mala quando a maior vontade na vida é se refugiar dos problemas e se sentir protegida. Quase tão bom quanto isso seria disfarçar uma queda ou um tropeço dando cambalhotas sem morrer de dor na coluna depois. A menina gostaria de fazer tudo isso e até tenta, mas antes é preciso ganhar elasticidade. Coisa que ela só vai conquistar quando aprender a ser flexível consigo mesma. As duas coisas andam lado a lado. Vai ver é por isso que tem tão pouca gente capaz de colocar o calcanhar na nuca quantas vezes for preciso e sem cara de sofrimento. Tem coisa que é difícil demais...