domingo, 25 de setembro de 2011

A velha e a árvore


Durante três meses a cena se repetiu. A menina andando apressada para chegar ao trabalho passava por uma rua de árvores grandes, troncos grossos, galhos que brincavam de se cruzarem e muitas folhas. Muitas mesmo. Tantas que o vento fazia seu trabalho levando várias delas ao chão sem que as copas sentissem falta. Naquele dia, quem sentia falta mesmo era a menina. Algo não estava no lugar de sempre. Bem próxima ao tronco de uma das árvores, uma senhora de cabelos compridos e brancos permanecia ali sentada, rodeada por seis sacos plásticos pretos bem cheios. Como aqueles pra colocar lixo. Parecia material para reciclagem, mas também dava para ver, em um que estava aberto, um pacote de biscoito, uma garrafa de água e três bananas. Em outro, pedaços de pano um pouco sujos que pareciam roupas. A senhora estava sempre com o mesmo vestido: de mangas curtas, fechado com botões na parte da frente, tecido branco meio puído e estampa de pequenas flores vermelhas. 

Às vezes penteava o cabelo, abria cada um dos sacos e organizava com cuidado o que estava dentro ou apenas olhava o movimento. A menina passava e observava tudo, só não tinha coragem de olhar para o rosto daquela mulher. Talvez coragem não seja a palavra certa, mas algo impedia o encontro dos olhos das duas. Algo que a garota não sabia o que era, mas que se perdeu em um momento de distração. Naquele rosto de quem já viveu tanto tempo havia um ar de tristeza, mas não era culpa da falta de dentes que dificultava um sorriso. Os olhos eram baixos e opacos. No dia seguinte, a senhora não estava mais lá. A rotina de encontrar aquela mulher ali, todos os dias, durante os últimos três meses se perdeu. Uma cena tão simples e sutil que só foi realmente percebida com atenção quando não estava mais lá. No lugar, um homem descansava em cima dos sacos que cercavam e ofereciam certa proteção para aquela senhora. A garota continua seguindo apressada por aquela rua, agora tentando se acostumar com o fato de que as coisas mudam. E imaginando onde estaria aquela senhora.        

domingo, 18 de setembro de 2011

Apagando velas


Ela estava voltando para casa. Dessa vez resolveu seguir o caminho, pela rua principal do bairro, a pé. Foi andando e encontrou um portão de garagem meio aberto com uns poucos balões em volta, cada um de uma cor diferente sem muita pretensão de estarem combinando. Aliás, a presença deles ali era mais importante do que o fato de serem uniformes ou em pares de tonalidades. Os passos da menina começaram a se tornar cada vez mais lentos. A curiosidade tomava conta e era preciso saber o que acontecia lá dentro. Ela conseguiu olhar por pouco tempo, para não ser indiscreta demais. Mas foi o suficiente para não esquecer a cena. Atrás daquele portão marrom com as pontas levemente enferrujadas, mais e mais balões. Um pouquinho de cada cor como se cada pessoa que estivesse lá dentro tivesse levado um pacote pequeno para ajudar na decoração. Alguns deles estavam envolta de um retrato, colado bem ao centro da parede. Na foto, uma criança, quase pré-adolescente, vestida com roupa de festa.

Logo abaixo, uma mesa velha que parecia que não suportaria aquele bolo cor de rosa tão grande acompanhado de pequenos docinhos tão juntos lembrando um forro. O barulho, de apenas algumas conversas e nenhuma música, era estranho por se tratar de uma festa, mas as coisas não pareciam menos alegres. Alguns meninos olhavam atentamente para os brigadeiros esperando uma autorização para comer ou provavelmente a distração dos adultos. Todos, em especial as garotas, usavam roupas simples, mas que pareciam novas e escolhidas com cuidado. A aniversariante ainda não estava naquela garagem promovida temporariamente a salão de festas, provavelmente cuidava de cada detalhe, unhas, cabelo e maquiagem, antes de encontrar as pessoas queridas e receber os presentes. Num descuido, a menina que observada tudo da rua foi percebida e ao mesmo tempo confundida com algum convidado desconhecido. O convite para entrar, feito com um aceno, era a indicação para a hora de ir embora. Poderia ter entrado, mas preferiu seguir apenas com aquela lembrança.

domingo, 11 de setembro de 2011

Um bom travesseiro


Ela abriu a porta para trancar logo depois. Apagou a luz e assim que encostou a cabeça no travesseiro não tinha outra alternativa: começou a chorar. As lágrimas saiam com facilidade espantosa, sem que fosse preciso fazer todas aquelas expressões e caras feias que as pessoas normalmente exibem quando querem chorar. E a menina nem queria chorar, na verdade. Mas precisava. Era tudo muito natural. Talvez porque a dor já estivesse presente por tempo demais, ou então, porque se dependesse de forças para produzir o pranto não sairia nem uma gota. Em meio a pensamentos confusos e tantos problemas lutando para se tornarem o centro das atenções, uma coisa não fico despercebida. Tá certo que dizem que mais de 60% do nosso corpo é água, mas a menina não imaginava que poderia sair tanta água de seus olhos. O travesseiro parecia uma toalha muito bem utilizada após o banho. O cabelo também não escapou, a chapinha foi dizendo adeus, e a garota antes tão vaidosa nem deu importância. 

Em meio a tantas coisas ruins e complicadas de digerir, ela buscava uma calma que não vinha. A vida já não estava lá essas coisas, o remédio não fazia mais efeito, o que motivava antes perdera a graça. E a cereja para completar esse bolo já tão recheado de problemas foi mais um dia ruim. Ruim não, péssimo. A garota foi aprendendo, da pior forma possível, que não poderia mais sair por ai confiando nas pessoas. Mas quando achou que seria possível relaxar e não ser assim tão radical, levou um empurrão. Pelo visto a impressão de antes estava longe de ser exagerada. As lagrimas foram parando de sair e a menina achou que pudesse ser por falta de água para colocar pra fora. Também ficou meio tonta e com a cabeça confusa. Não era desidratação, apenas o sono chegando. O choro foi abrindo espaço para o cansaço de forma discreta e quase imperceptível. No dia seguinte, a esperança de algo bom que poderia surgir não estava nos olhos. Eles estavam ocupados demais tentando não parecer tão vermelhos e inchados.

domingo, 4 de setembro de 2011

O que fazer com o tempo



Ela tem sono, mas dorme pouco. Isso não é culpa das preocupações, embora sejam muitas.  Há seis meses atrás, os problemas eram quase os mesmos e ela dormia o dia praticamente todo. A garota foge do sono, não por causa de pesadelos, até porque na hora de colocar a cabeça no travesseiro sabe bem separar fantasia da realidade. Pelo menos nesses momentos a menina sabe. Foge do sono porque precisa. Acontece que para ficar bem ela inventou uma estratégia maluca: ocupar todo o tempo. Dessa forma, não sobra espaço na agenda para escrever certas tarefas como sofrer, chorar, lembrar. Trabalho, trabalho extra, aula, aula extra, leitura, leitura extra. Tudo o que já era muito, ganhou um extra. E no meio de tudo ainda aparecem aquelas coisas não programadas, ou seja, extras já na essência. A menina está exausta. Fica um pouco tonta quando chegam às 21h, mesmo que esteja na rua. Já esqueceu momentaneamente o número do apartamento da irmã duas vezes. E olha que a garota vai até lá pelo menos um dia na semana.

Vive correndo. Não sabe como é ir andando para pegar o ônibus faz tempo. Vai depressa para o banheiro também, mesmo que não esteja com tanta vontade assim. A pressa para o almoço existe mesmo que não haja fome. A irritação com o tamanho da fila que não anda ficou ainda maior. O engarrafamento, sempre grande, tomou uma proporção gigantesca que só ela vê. Tudo é vontade de fazer o tempo passar, de querer gastar cada minuto, de preferência com urgência. A menina usa truques para acelerar os minutos, tenta enganar as horas, mas é sempre ela a fazer papel de boba nessa história. O tempo já percebeu essas artimanhas e, talvez por isso, continua irredutível. Segue como quer. Pode ser que um dia quando a menina entender o porquê da ansiedade ele resolva cooperar. Só que quando isso acontecer, a menina não vai mais precisar dessa ajuda. O tempo da menina e o tempo do tempo serão um só.