domingo, 30 de outubro de 2011

É preciso lembrar


Bastou alguém contar pra menina que, quando a gente encosta a cabeça no travesseiro, sonha com coisas que fazem parte dos nossos desejos mais secretos pra coitada transformar o sono em obsessão. Fica mal humorada toda manhã quando acorda e percebe que esqueceu o que tinha sonhado. Sabe que sonhou, mas não lembra o que foi. Anota num caderninho rosa todo bordado que ganhou de presente todos os detalhes quando consegue se lembrar. Escreve tudo mesmo, cor da roupa, cheiros, texturas e até nomes de quem resolve aparecer por lá. Só não tem coragem de contar algumas partes que estão ali. É que costumam aparecer pessoas quase desconhecidas em situações estranhas e gafes piores que sair de casa de pijama ou tropeçar em alguém que está dormindo no chão da rua. Ás vezes a vida real se mistura com cenas de filmes, novelas ou notícias de jornais ao longo dos sonhos. Daí a irritação é maior. Ela não consegue saber se aquilo tudo fazia parte do universo vivido enquanto dormia só porque tinha visto aquelas coisas ao longo do dia. Será que teria alguma relação com algum desejo dos mais secretos? Droga! Não dá pra saber.

A garota está tão preocupa com esse papo de sonho por causa das coisas que quer fazer na vida. Na verdade, isso chama tanta atenção justamente porque ela não consegue saber que coisas são essas. Como toda pessoa esperta, tentou pesquisar na internet para achar a tão esperada resposta. Entre livros de autoajuda, depoimentos de pessoas que largaram tudo para viver em um templo budista (nada contra templos budistas ou de qualquer outra religião) e dicas para mudar o visual, ela percebeu que o senhor Google não seria capaz de responder a essa pergunta. Passou então a observar a vida dos outros. Pessoas que querem ver o mar, descobrir o gosto de comer insetos na China, casar com um vestido de R$20.000 ou mesmo conhecer o Beto Barbosa. Pois é, tem gosto pra tudo. (Novamente, nada contra quem curte Adocica, Preta ou Dançando Lambada). A menina logo viu que tinha alguma coisa errada com ela. Todo mundo guardava na ponta da língua algum grande sonho, o maior desejo na vida, por mais estranho, trivial ou grandioso que fosse. Ela não. Até tenta pensar sobre isso durante o dia para desvendar o mistério, mas as coisas da rotina, o trabalho, os estudos e os problemas dizem ter prioridade e que receberam a senha primeiro. Então a menina viu que o jeito é sair por ai tentando descobrir o sonho nos sonhos. Parece uma tarefa difícil, e realmente tem sido, mas já passou tempo demais e a resposta precisa vir.        

sábado, 22 de outubro de 2011

É preciso complicar?


“Luiz, quer dizer que você não vai não? Então aproveite sua sexta-feira!” Foi com voz irritada que a mulher disse as duas frases e desligou o celular. Já com seus 30 anos, estava ela maquiada e com roupa bonita parecendo preparada para um encontro especial. Encontro esse que não aconteceria mais. A mulher havia marcado, com o tal Luiz, namorado dela, de se verem em frente ao ponto de ônibus e, quando ela já estava se preparando para descer, descobriu que ele não iria mais. Tentou passar certa tranqüilidade, mas não conseguiu. Respirou fundo, enxugou uma lágrima que borrou o delineador e telefonou novamente fingindo que a ligação havia apenas caído. Essa desculpa parece não ter funcionado de início já que ela teve que repetir algumas vezes: ”Se eu tivesse desligado na sua cara não teria ligado de novo. A ligação caiu”. Depois de insistir várias vezes que ele poderia fazer o que quisesse e que isso não estragaria o fim de semana dela, desligou o telefone. Dizendo antes que deixaria o celular ligado, caso ele quisesse telefonar. Ela não se moveu do banco do ônibus onde estava. Seguiu de cabeça baixa de volta para casa.

A menina acompanhou toda a cena de perto. Entrou no coletivo pouco antes de tudo acontecer e estava feliz diante da possibilidade de ir para casa descansar depois de um dia de trabalho. Para ela e para a mulher, chegar em casa carregava significados muito distintos: a vitória e a derrota. A mulher, tão bonita e arrumada, acabava de jogar na lata do lixo horas de preparação e expectativas. E o golpe vinha justamente de quem deveria dar carinho: o namorado. A menina estava despenteada e mal arrumada após um dia corrido com trabalhos e compromissos. Cansada como nunca e com os pensamentos agitados. Era confuso ver uma mulher sendo mal tratada pelo companheiro e se resignando com a possibilidade de voltar para casa triste enquanto ele provavelmente se divertia e estava alegre. Era estranho ver a ligação sendo encerrada com uma espécie de pedido disfarçado para que o tal Luiz ligasse, uma vez que seja, no fim de semana. Ele não é namorado dela? Por que não ligar? Por que não sair? Por que não se importar? A garota preferiu não pensar mais no assunto, pegou o mp3 para se distrair. Tem coisa que é tão simples que o povo complica pra ver se dá conta.

domingo, 16 de outubro de 2011

Enquanto ele não vem


Depois de tantos sorrisos, risos, gargalhadas, um momento de tensão. A chuva atrasava ainda mais o momento de ir embora, o que era bom já que não encontrava as amigas fazia muito tempo. Mas a hora foi passando e a menina se viu ás 23h10 em um ponto de ônibus deserto, em uma rua deserta, em frente a um hospital estranhamente deserto. Alguém explica como que pode porta de hospital ficar vazia? O máximo que dá é pra estar menos cheia, vamos combinar. E pra completar, chovia. E esse negócio de água caindo do céu a noite deixa um clima meio estranho, quase de filme de terror. Mesmo não tendo quase nenhuma cena de filme de terror gravada na chuva de noite. Para muita gente essa situação poderia ser tranqüila, mas não para ela.  A garota se sentiu confortável quando chegaram dois velhinhos que conversavam enquanto o ônibus não chegava. Afinal de contas, quem desconfiaria de dois velhinhos de camisa pólo que usavam a tradicional combinação de sandália de couro e meia, típica dos homens da terceira idade? Melhor do que isso, só se aparecesse um casal carregando um bebê que acabava de sair do médico. 

Fato é que a garota estava em um momento meio egoísta. Torcendo para que o ônibus dos velhinhos não chegasse, pelo menos não antes do dela, ou que aparecesse um bendito casal com uma criança. Estranhamente traria certa segurança mesmo aquelas pessoas possuindo uma fragilidade ainda maior do que aquela que a garota levava consigo. E a cada momento que um dos senhores fazia algum movimento, o coração disparava, não por medo deles, mas por achar que o ônibus que se aproximava ampliaria, ainda mais, o medo da solidão. De repente, a preocupação passou a ser em ficar acompanhada. Olhava para todos os lados com medo da chegada de alguém: um louco, assaltante, bêbado ou coisa do tipo. O ônibus não chegava e estando sozinha só poderia sofrer as conseqüências da ação do vento frio e das gotas geladas. Já bastava. Olhou para trás e viu um homem se aproximando. Ele logo tratou de dizer boa noite e contar, de maneira frenética, que trabalhava em uma churrascaria e tinha conseguido sair mais cedo do emprego por um problema na churrasqueira. Ela sentiu medo. Nada contra quem ganha a vida assando carne, mas tá difícil achar que hoje em dia um estranho poderia aparecer e puxar papo, na rua às 23h30, apenas para ajudar a passar o tempo. A menina segue a vida sendo desconfiada de tudo. E não tem como ser diferente. Fugiu no primeiro taxi que apareceu.    

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O revólver e a bolsa


Estava cedo, dia claro, pessoas indo para o almoço ou voltando pro trabalho. Ela andando na rua com o estômago mais do que cheio, efeito de um sanduiche, batatas fritas e um copo de 500 ml de refrigerante. Nas mãos, um embrulho para dar de presente a alguém muito especial. Um pacote leve, mas de muita importância, embora não custasse nenhuma fortuna. Perto de uma banca de jornal, uma mulher e um homem surgem bem na frente da garota. A mulher chama o cara de vagabundo e empurra a bolsa em cima dele. A menina pensa logo se tratar de uma briga de namorados e segue no mesmo ritmo enquanto se dá conta de que entre aqueles dois não havia nenhum relacionamento de intimidade. A bolsa só era entregue porque nas mãos de quem a recebia estava um revólver. Em poucos segundos, o homem sobe na garupa de uma moto com os dois objetos na mão e simultaneamente ele e a mulher tomam caminhos distintos. 

Ele precisa apenas esperar até que a moto se dirija a um lugar seguro e o roubo terá êxito. A mulher se apressa em pedir emprestado, a um estranho, o celular para chamar a polícia. Enquanto tudo acontecia, a menina acompanhava cada movimento de perto. Não que ela tivesse feito essa escolha, mas a situação estava bem ali de forma tão inacreditável que a única reação possível foi a naturalidade. Continuou andando até chegar ao seu destino, agora acompanhada de pensamentos que ela não previa e não conseguia mandar embora. Não gritou, não desmaiou. As mãos só conseguiram ficar trêmulas bem longe dali. Ela pensava na mulher que agora estava na rua sozinha com a sensação de perda, já que não veria mais a bolsa. Ah, e como perder dói. Mesmo que a bolsa fosse velha e não tivesse nada de valioso lá dentro. Mesmo que a polícia recuperasse o objeto algum tempo depois. Não ter mais o que se tinha antes, a bolsa, a calma, a sensação de segurança. Ah, e como perder dói... 

domingo, 9 de outubro de 2011

A menina e o livro


Dois trabalhados da faculdade para entregar, um livro inteiro para resumir, estudar inglês e espanhol para as provas do curso. A menina tinha tantas obrigações que não sabia por onde começar. E como de costume estava cansada. Cansada de tudo. Cansada de um tanto... Não que trabalhar e estudar, ao mesmo tempo, seja a coisa mais grandiosa do mundo, afinal, tantas pessoas conseguem conciliar isso e ainda arrumam tempo para criar filhos ou montar uma banda. Mas fazer as duas coisas se torna realmente algo grandioso e, principalmente, complicado quando quem inventa de fazer isso é você e não um amigo, vizinho ou conhecido. A garota finalmente se deu conta disso. Está próxima de mais uma sexta-feira e com tudo brilhantemente arquitetado. Sábado, após a aula, começaria efetivamente o fim de semana e poderia usar o período da tarde para iniciar um dos trabalhos. O resumo ficaria para a manhã de domingo e a tarde seria dedicada ao estudo de idiomas. Durante a noite, mais um tempinho para organizar a vida acadêmica, limpar gavetas, lavar roupas. 

Tudo planejado tão certinho que tinha mesmo que dar errado. A tristeza e o desânimo, somados ao convite da irmã para sair, fizeram a menina se dar conta de que a agenda não incluía nada escrito sobre descanso. Muito menos lazer. Já estava tão acostumada a deixar essas coisas fora da lista que precisou se sentir mal, mas muito mesmo, para cair a ficha. Também encontrou na mesa do quarto o livro que ganhou de aniversário. Aquele que depois de ser desembrulhado fez os olhos da menina brilharem, mas após três semanas ainda não tinha recebido a chance de ter ao menos uma página lida. Após a tarde de sábado, no cinema, ela resolveu chegar em casa, ignorar todos os planos e ler o livro querido. Ele certamente não cairia em nenhuma prova e dessa vez isso não importava. Era a chance de se desprender um pouco do previsível, justamente porque a vida é assim. As coisas podem não ser como o esperado, aliás, elas geralmente não são. Mesmo.

domingo, 2 de outubro de 2011

Do outro lado da vitrine


Eles ficaram se encarando. Ela na rua e ele do lado de dentro da vitrine. Da primeira vez, logo que a menina viu aquele potinho de doce na padaria da esquina, andou bem devagar para ficar olhando por mais tempo. Era branco com pedacinhos coloridos, daí não teve como não lembrar rapidamente da sobremesa que ela sempre fazia para a família no natal. Parecia o mesmo doce que ela tratava como uma espécie de tradição só dela: fazer as gelatinas de cores bem diferentes, cortar em cubinhos e misturar ao leite condensado com creme de leite. Foi seguindo seu caminho e o potinho ficou ali onde estava. No dia seguinte, ela fez o mesmo trajeto e lá estava ele de novo, no mesmo lugar. A garota parou por alguns segundos e pensou na possibilidade de experimentar. Instantaneamente surgiu uma série de desculpas para ir embora como o compromisso, a pressa, o tamanho da fila, a falta de dinheiro ou a preguiça. Até certos argumentos bestas como o calor, medo de o doce estar estragado e o cansaço se aproximaram caso as outras desculpas não conseguissem ser convincentes. 

Fato é que por vários dias ela esteve ali naquela porta e sequer conseguiu entrar. Algumas forças a puxavam para o outro lado da rua e outras a empurravam para longe da padaria. Os dias se passaram e ao olhar novamente para a vitrine sentiu uma leve irritação. Um monte de saladas de fruta havia roubado o espaço, quase que sagrado, daquele doce. A garota encarou como coisa do destino e tratou de pensar que aquele era um sinal para que a aproximação não acontecesse, afinal, justamente no dia em que iria realmente comprar, não poderia. E na manhã seguinte, lá estava ele no lugar reservado. As velhas desculpas apareceram, mas a menina só se deu conta quando se sentou e estava com o potinho nas mãos. O preço foi caro em relação à quantidade, mas não houve arrependimento. Também não foi o melhor doce que ela comeu na vida. Só representava algo que a garota tanto queria e conseguiu. E isso já era bom.