domingo, 31 de julho de 2011

Noivinha


A roupa era branca, mas não era uma roupa qualquer. Um vestido branco escolhido, provado e ajustado durante os meses de espera para o grande dia. Um dia que finalmente chegou e foi aguardado com a ajuda de uma contagem regressiva extremamente rápida e lenta ao mesmo tempo. Na véspera, é que a menina se deu conta do tanto que um ano passou depressa. Ela entrou na igreja igual a uma princesa. Bonita como sempre, usava maquiagem leve porque aquelas sardas que deixam o rosto tão jovem e suave não deveriam ser escondidas. Nos olhos, nada de sombra muito carregada. Na medida certa, sombra, rimel e delineador não poderiam se sobrepor ao olhar brilhante e ligeiramente úmido de quem caminhava para uma vida nova cheia de alegria. Passos que algumas pessoas podem até pensar que sejam um pouco precoces, afinal de contas ela tão novinha já está começando a escrever a história de uma nova família. Mas esse parece ser o tempo certo que foi reservado pra ela começar mais uma fase.

Voltando da lua de mel, ela encontra uma casa nova. Sem as três irmãs pedindo uma roupa emprestada, cantando pelos corredores ou fazendo alguma brincadeira. Quando abre a porta, sente um cheiro de bolo recém saído do forno, mas logo percebe que não é mais uma das receitas da mãe e sim o aroma da cozinha do apartamento de cima. Agora ela vai criar as próprias receitas e esperar a chegada dos filhos para viver novamente as aventuras de uma casa barulhenta. Enquanto esse tempo não chega, a garota que, embora casada, ainda preserva seu jeitinho de menina, segue descobrindo um novo mundo com leves traços do antigo. Segunda-feira ela já reencontra as amigas na faculdade.  As leituras, provas, trabalhos e estágio vão se misturando às preocupações de onde ficará aquele vasinho de flores ou qual forro colocar na mesa. Se o vasinho ficará na mesinha de centro ou na estante ainda não dá pra saber. Nem qual forro vai acompanhar o casal no primeiro jantar. A única certeza é que a noivinha será muito feliz.  

domingo, 24 de julho de 2011

Mais que um secador


De calça de moleton velha e com a barra rasgada, cabelo preso sem a menor preocupação em deter algum fio que resolveu escapulir. E com certeza muitos estavam fora do lugar. As unhas tinham vagas lembranças do que seria um esmalte. Mas mesmo assim a menina resolveu ficar bonita. Queria e precisava disso. Por um bom tempo o desejo de cuidar da aparência estava sendo freado pela misteriosa preguiça que ela desconhecia de onde vinha. Preguiça essa que não tentava dar palpite quando a garota fazia qualquer outra coisa, desde lavar o carro até passar roupas. Enfim, chegava a hora de enfrentar o desafio. Procurou no armário a roupa que achava mais legal. Não era nova, mas na verdade nem precisava ser. Bastava deixar a menina com a aparência mais alegre, de quem gastou algum tempo para escolher aquela roupa e não uma outra qualquer. O resto do trabalho ficaria a cargo do salão. Não o trabalho todo, mas boa parte dele sim. 

Enquanto fazia as unhas, tentava ficar quieta. Apenas tentava. Era impossível não olhar atentamente para a prateleira vendo vidros de esmalte que iam do rosa ao preto passando pelas cores ousadas que as moças usam hoje em dia: amarelo, verde e azul. A menina seria obrigada a decidir entre tantas opções. E foi conservadora escolhendo o vermelho que sempre usava nos tempos em que se arrumava sem grandes dificuldades. Prestou atenção também na conversa da manicure que falava mal de outra cliente (Sim, muitas delas fazem isso quando você dá as costas e sai do salão), no papo da cabeleireira que desviava da fumaça do secador falando da novela das seis. Também teve seus momentos de deixar a atenção se perder e apenas pensar no porque de estar se arrumando. E será que precisava de um motivo? Há não muito tempo atrás essa pergunta nem seria feita. O fato é que independente de pensamentos, conversas, fumaças e fofocas algo de bom acontecia quando as cutículas saiam, as unhas recebiam pinceladas e cada pedacinho do cabelo ficava liso. Crescia uma ansiedade boa de ir logo ao espelho pra ver o resultado. E nem importava se o que ela encontrasse no reflexo parecesse mais especial do que os outros iriam ver. A alegria em se cuidar estava de volta. Levantou da cadeira e seguiu para casa com passos lentos e leves, a cabeça se movendo devagar para convidar o vento a tocar os cabelos. E um sorriso bobo.           

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Mensagem de texto


Pelo terceiro dia seguinte. Ela pegou o ônibus no mesmo horário e sentou no mesmo banco. Logo ao lado, estava também a mesma pessoa: um desconhecido. Ele com a mochila no colo, celular na mão e o ombro encostado na janela. Usava o aparelho uma hora para mandar mensagens, que a propósito eram longas, e outra hora pra escutar música. Ela sabia que os recados eram grandes porque observava toda a cena. Só não conseguiu ver o que estava escrito em cada uma delas porque observava discretamente demais. Dessa forma, só restava imaginar quem as receberia. Talvez uma namorada, o melhor amigo, um colega de trabalho ou a mãe. Claro que não era a mãe, né?! Afinal de contas quem você conhece que fica mandando mensagens longas pra avisar pra mamãe que comeu direitinho, está agasalhado e quase chegando em casa? A música também não deu pra ver qual era. 

O garoto escutava de forma baixa, discreta. Sem dar batidinhas nem com o pé nem com as mãos. Pela reação, talvez não fosse nenhum Rock desses pesados e a menina torcia para também não ser pagode, funk ou axé. Ela tirou um livro da bolsa e, de imediato, aquele desconhecido olhou para ver o que a menina estava lendo. A garota ficou sem graça já que tinha nas mãos apenas mais um desses livros de auto-ajuda que o pessoal escreve para as mulheres aprenderem a se defender dos homens. Umas acreditam que tudo naquelas páginas é verdade, embora nunca coloquem em prática. Outras vêem o conteúdo como algo meio humorístico. A menina seria um meio termo entre esses dois grupos de mulheres. Depois de um tempinho cansou da leitura e resolveu continuar observando. Ele já não estava mais com a blusa de frio verde musgo. Retirou enquanto ela se distraia com o livro e a menina nem percebeu o menor movimento. A viagem chega ao fim para ele, que dá o sinal e percebe a estranha ao lado abrindo caminho enquanto o garoto abre a boca para dizer com a voz grossa e bonita um “obrigado”. Tudo ali muito discreto a ponto de não passar batido. E ainda tem gente que acha que a simplicidade não chama atenção. 

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Listando a vida


Ela está fazendo uma lista. E olha que não é fim de ano quando todo mundo escreve aquele monte de planos para os 365 dias que vem pela frente. Nem é época de aniversário pra enfileirar nomes a serem convidados numa festa. Também não está checando o que falta na dispensa para ir às compras. A lista que a menina está fazendo é meio confusa, assim como a cabeça dela nesse momento. É que foram muitos ganhos e perdas num tempo curto demais. Pra quem adora se prender aos detalhes da rotina na ilusão de se sentir mais segura, isso faz alguns estragos. Não dá pra definir de que seria essa lista. Ali misturado, numa ordem que nem é alfabética nem de importância estão coisas para comprar, doces, esportes, lugares, pessoas que precisam de ajuda, umas que ela gostaria de encontrar pela vida outras que merecem e devem ser esquecidas. Tudo bem que é meio idiota colocar no papel um nome para tirar da lembrança já que isso só ajuda a lembrar, mas a menina nem pensa nisso.

De alguma forma aquela lista surge como uma amiga, dessas com jeito de psicóloga, que escuta anseios, presta atenção nas bagunças criadas na cabeça e que dão um jeito de escapulir pela boca. E ainda tem a vantagem de tentar ajudar a organizar tudo. E a garota faz a lista daquele jeito romântico de sempre. Nada de computador! Tudo escrito a mão e com o cuidado de usar canetas coloridas. Ela adora canetas coloridas. E romântica também em acreditar que de alguma maneira aquelas palavras vão todas fugir do papel, no momento certo, e se materializar. Pelo jeito cuidadoso com que ela desenha as letras e pelas pausas que faz enquanto pensa no próximo item, daria para dizer que eles se tratam de planos para o futuro. Mas ela sabe que é mais do que isso, só não tem a dimensão do que seja exatamente para conseguir explicar. Talvez sejam sonhos, misturados com esperança, o desejo de mudar de vida e a necessidade de encontrar um caminho. Que nome se dá pra isso?

domingo, 10 de julho de 2011

Como colocar cores


Ela precisava de alguma coisa para alegrar a vida. E receitinhas para isso é o que não faltam. Aliás, toda hora aparece um amigo, colega, conhecido e até desconhecido que acredita conhecer as fórmulas certas pra aliviar uma tristeza. Mandaram a menina abandonar tudo que lembre das tais coisas que fazem mal. Essa dica é velha o bastante para todo mundo saber que sozinha não é eficaz. É difícil porque certos hábitos, objetos, pessoas e lugares são complicados de serem largados. Fica aquela coisa de você sentir que precisa jogar fora e bater o medo do arrependimento, a vontade de ter e o desejo de não querer brigam na cabeça e, mesmo que se saiba racionalmente o que é o melhor a se fazer, isso não resolve o problema. Outra coisa que sugeriram para a garota foi investir em mudanças no visual: cortar o cabelo, se arrumar mais e comprar roupas novas e alegres. Tudo também muito complicado. Será que mudar o visual, do lado de fora, teria o poder de fazer a beleza passar meio que por osmose para o lado de dentro que se sente tão feio? Uma blusa colorida ou um vestido vermelho conseguiriam pintar a alma que está temporariamente cinza?
  
Já receitaram pra ela fazer academia. Afinal de contas isso virou remédio pra tudo: perder peso, problemas na coluna, melhorar o fôlego, ocupar o tempo e conhecer gente nova. Atividade física é sempre bacana, mas haja argumento para convencer um corpo que só quer dormir, a acordar não só para puxar uns ferros, mas a acordar para a nova vida. A garota escuta os conselhos com o carinho de quem encontra apoio de todos os lados. Tenta fazer, só que de um jeito meio atrapalhado, cada uma dessas coisas com a consciência de que de imediato o negócio tá dando errado. Mas como quase nada se resolve rápido mesmo, isso fica de consolo. As receitas estão todas ai. Ninguém sabe é a dose certa de colorir a vida e como deixar o verde, amarelo e azul alcançarem os cantinhos de difícil acesso.  As lembranças ainda vêm misturadas com a alegria da saudade e a tristeza da frustração. E ela não sabe se vai ter que jogar todas fora ou dar apenas uma limpeza. Não descobriu se para despertar o corpo é tomar banho frio ou serve uma xícara de café. 

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Quando eles estão juntos


Dentro do vestiário do clube. Ela abriu a mochila e tirou de lá uma sacolinha com um par de tênis velho. Era tão velho quanto querido. Quantas e quantas vezes ela já não esteve com ele? O tempo de convívio foi produzindo um relacionamento, entre a menina e os tênis, cada vez mais forte e delicado. Ela possui os pés levemente tortos para dentro, sendo o direito um pouquinho mais inclinado que o esquerdo. O calcanhar meio áspero e a sola rosada contrastam com a pele morena e macia que cobre a parte de cima dos dedos. Cada um deles um pouco menor que o outro fazendo uma seqüência, do dedão até o mindinho, que lembra uma escadinha construída milimetricamente. As unhas, às vezes pintadas de cores que podem ser tanto um vermelho quanto um azul marinho, quase sempre estavam com um pedaço faltando ou uma discreta rachadura. Só porque a menina desde criança ama jogar futebol.

E o par de tênis sabe que foi justamente esse amor que promoveu a aproximação entre a garota e aquele calçado. No primeiro encontro, o estranhamento já era esperado. De início, sapato novo nenhum está preparado verdadeiramente para as peculiaridades de seu dono. Mas aos poucos ele foi aprendendo a se curvar para não perturbar a individualidade dos pés tortos da menina. O cadarço ia entendendo que seria amarrado da mesma maneira por inúmeras vezes e só não tomava a liberdade de fazer isso sozinho porque aquele era mais um gesto de afeto naquela relação. E as pontinhas dele que sempre ficavam prestes a tocar o chão também eram ajeitadas com cuidado nas laterais do tênis. As palmilhas ofereciam a maciez em troca do talco que mantinha cada uma delas sem o cheiro de chulé. O solado sabiamente ia se desgastando, um pouco mais que o normal, na ponta bem perto de onde se acomoda o dedão. O tênis também queria ajudar a menina a dar chutes mais precisos. Na hora de colocar as meias para se unir a ele, de calçar, de descalçar, de chutar e de lavar é que dá pra sentir como os detalhes construíram aquilo tudo. Quando a menina e o tênis velho estão um com o outro a sensação de conforto faz pensar que os dois sempre estiveram ali juntos.