terça-feira, 15 de março de 2011

Um monte de lata na boca


"A senhorita, a partir de agora, está proibida de comer maçã, rapadura, pé-de-moleque. Destroçar aquelas asinhas de frango em churrascaria então nem pensar!" Aquilo não era coisa de dieta até porque aquela menina nunca se preocupou com isso. A frase foi dita por um moço bonito vestido de branco e que trabalha torturando os outros pela boca. Um dentista, ou melhor, ortodontista. Ela nem sabe o que passou pela cabeça dele quando viu a tímida menina pela primeira vez. Aquela que procurava colocar um aparelho nos dentes, fora da época em que as pessoas normais são levadas á força pela mãe. As crianças chegavam até lá por volta dos 8 anos para ficarem presos a aquele objeto incomodo e provocador de tanto constrangimento nos tempos escolares. Ela já tinha seus 20 anos. Imaginava que aquilo seria um processo doloroso, talvez um pouco demorado, mas que ajudaria a conquistar um sorriso bonito. Poderia ser a única coisa realmente bela que faria parte do seu corpo. Então valia a pena colocar aquele troço na boca mesmo deixando a fala esquisita, cortando eventualmente pedacinhos na lateral da língua e dificultando a escovação. Logo que foi pra casa, já imaginava como se movimentariam os caninos, os molares e pré-molares até ficar tudo certinho no devido lugar. E como é bom quando as coisas vão se ajustando e ficando como devem...

É claro que durante o caminho os dentes não se moveram nem um milímetro, mas a dor que ela sentiria cada vez que voltasse ao consultório para apertar aquele verdadeiro cinturão bucal já dava para experimentar ali. Como se não bastasse isso, a moça corajosa ainda teve que retirar 4 dentes para que o encaixe fosse perfeito. Durante os 4 anos de convivência com o aparelho fixo ainda teve que dar as boas vindas a mais 4 dentes que resolveram surgir para dificultar as coisas. Todo mundo já ouviu falar de sisos, né?! Mais 4 dentes retirados. A capacidade humana de produzir dentes realmente compete com a de produzir boas idéias ou de gerar filhos... A menina até queria que fosse possível conseguir dentes bonitos puxando ferro em uma academia, mas como não tinha jeito foi fazendo o que a galera da saúde bucal mandava e esperando o tempo passar. E ele passou. No dia de remover da boca aquele amontoado de metal, a ansiedade era grande. Foi só o moço de branco terminar o trabalho e emprestar um espelho para vir o grande susto. Ela finalmente tinha algo de bonito pra chamar de seu. Não era um vestido ou um sapato que com o tempo saem de moda ou podem ser roubados. Aquela fileira harmonicamente alinhada de dentes pertencia a ela de verdade. Terminada a consulta tratou logo de estrear o presente que havia ganhado. Foi rir das coisas bestas da vida.

domingo, 6 de março de 2011

A senha 1854621387209


Ela caminhou até chegar a hora de esperar. Esperou na fila do banco o momento de entregar todo o dinheiro em troca de sentir o alivio de quitar as dividas, no consultório aguardou pela consulta que não viria na hora exatamente marcada. Antes de tudo isso, a espera pela chegada do ônibus em direção ao centro, o tempo para receber o troco nem sempre certo do dinheiro da passagem e, é claro, a espera pelo momento de descer. Agora estava ali olhando de um lado a outro para que chegasse o ônibus da hora de voltar para casa. Tanto tempo, tanta espera. Cada um desses instantes tem uma duração diferente que não é exatamente aquela que se esperaria ter ou que cada um gostaria de aguardar.

A menina também pensa nas tantas outras coisas da vida que se deve esperar, ou não, e que às vezes demoram não os 20 ou 30 minutos do ônibus ou as 2 horas ou 2 horas e meia de um terrível engarrafamento. Se certas grandes coisas da vida como o resultado de uma prova, um emprego, um namorado ou a viagem dos sonhos aparecessem pela frente nos espaços de tempo citados ai em cima, e que costumam parecer eternos, ela passaria a tratar cada volta pra casa e cada fila como uma calma pausa no dia. Não haveria mais o desespero de olhar para cada quarteirão deixado para trás nem para os milhões de carros logo ali em frente. A distribuição de senhas seria apenas mais uma forma de organização. Aliás, como a menina gostaria que houvesse distribuição de senha para as grandes coisas da vida! Ela receberia um número e mesmo que ele fosse o 1854621387209 sentiria um pequeno, mas importante alívio. Demoraria, mas dai era só pegar um bilhete, umas revistas e ir lendo enquanto confere atentamente a última senha chamada. Poderia demorar, mas chegaria a sua vez.    

quarta-feira, 2 de março de 2011

A menina e a chuva


Quando era só uma criança, um belo sonho da menina era escapar dos cuidados da mãe, em um dia de chuva, e fazer um quase ballet na enxurrada. Mas o máximo que dava era pra ver a água caindo enquanto estava muito bem protegida por galochas vermelhas, capa de plástico com desenhos da Moranguinho e guarda-chuva cor de rosa. (Vamos dar um desconto que só depois da adolescência a gente aprende a combinar roupas e acessórios. Outro desconto ainda porque naquela fase da vida, mães não davam às filhas liberdade na escolha do vestuário) Se a vontade de brincar na água suja e corrente era forte demais, os argumentos adultos para impedir também eram. Uma mocinha não poderia desfrutar da alegria destinada apenas aos moleques de rua. Bichinhos microscópicos que estavam no chão se aproveitariam da água para penetrar nos pés desatentos e em seguida buscariam rapidamente a barriga. Lá no intestino, os micróbios fariam uma festa danada até se tornarem lombrigas gigantescas. Para não correr o risco, melhor deixar quieto.

Com o tempo a chuva foi ganhando outros significados para aquela menina. Deixou de ser a tentação dos tempos de infância para virar a maquiagem que dá um brilho especial ao asfalto, o ativador que garante à terra um cheirinho molhado melhor que o de muito perfume caro. A água que escapa do céu, às vezes discreta durante a madrugada, surge enquanto todo mundo dorme só para refrescar o ambiente quente no verão. No inverno, a chuva produz a melodia para embalar o sono da menina que desperta rapidamente só para perceber que está chovendo, apreciar o macio edredon e voltar ao sonho. Mas se é durante o dia, aquela água toda não passa despercebida. É a desculpa para o transito que sempre foi ruim mesmo, a que faz questão de atrapalhar o cabelo e ensopar a roupa. E a menina já nem liga pra isso mais. Basta chegar em casa, tomar um banho quente, pegar um livro e deitar no sofá de frente pra janela.