terça-feira, 31 de maio de 2011

Com o controle nas mãos


Com o controle de um carro nas mãos. Mas claro que não era um daqueles veículos que ficam nas ruas. Esses com buzina e espelhinho que, embora muitos digam que não, foi feito para passar batom. A garota que havia tirado carteira apenas para cumprir uma daquelas várias etapas da vida como abandonar as fraldas, terminar o colégio e se casar, morria de medo de dirigir. Na verdade, o tal veículo era mais no diminutivo mesmo: carrinho. Só que não era um desses de bebês. Isso porque ela pensa que nem tem idade ainda pra isso e é tão metódica que só vai pensar em filho quando tiver dinheiro e tempo para planejar a vida do coitado até a universidade. A tarefa era conduzir o carrinho de supermercado. E lá estava a menina. Passeando entre latas de ervilha e pacotes de macarrão. Se mantendo atenta à tarefa de cuidar para não trombar nos carrinhos das outras tantas pessoas que faziam compras. Freando com precisão para escapar do trauma de atropelar as crianças que correm entre as prateleiras levando nas mãos o ultimo chocolate lançado ou o pacote de chips, cheio de ar e que vem com figurinha dentro. Algumas coisas bem parecidas com o transito lá fora, só que em escala menor.

Na fila para o açougue, uma senhora insistia em pedir ao funcionário para ir mostrando peça por peça de carne para escolher aquela que achasse mais bonita. Enquanto esperava ia sentindo o corpo gelar por causa da proximidade com o freezer. Ela é tão magrinha que falta tecido adiposo e ai cada ventinho é um frio só. Também ajudou pacientemente um senhor barrigudinho que apareceu do nada pedindo dicas sobre como escolher limões para fazer caipirinha. O coitado perguntou justo pra ela que nunca provou bebida alcoólica nenhuma nessa vida. Na hora de pagar pelas compras, a demora de sempre acabou acentuada por um leve descuido da cabeça, já cansada, daquela garota: estava com dinheiro e foi parar num caixa exclusivo para pagamento com cartão. No caminho para casa, ia colocando as idéias em ordem enquanto buscava explicação para a confusão que acabara de fazer. Também ajeitava as sacolas nas mãos. Equilibrando todo aquele peso em um braço e outro enquanto ia andando. Era sem dúvida mais fácil controlar o que estava nas mãos do que o que ocupava a cabeça. 

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tentando ser útil


Era uma segunda que ela não queria que fosse de segunda como todas as outras. O despertador da menina tocou Às 7h da manhã do dia da semana mais temido e odiado por todo mundo. Ela não odiava aquele dia, aliás, tinha esperanças. Por isso estava de pé tão cedo e, sem necessidade aparente, num momento em que até os mais “pão duros” tirariam dinheiro do bolso com satisfação para poder dormir mais um pouco. Logo que saiu da cama nem pensou de imediato nos remédios de rotina ou em cuidar do estômago reclamão. Foi correndo pegar a agenda para planejar aquele dia. E como seria prazeroso fazer aquela lista de atividades simples como ler capítulos de um livro, lavar a louça e dar uns telefonemas. E a cada tarefa cumprida ia escrevendo um “OK!”com uma caneta brilhante que lembram os tempos da adolescência. Época em que cumprir tarefas não era lá uma coisa boa. 

Ela preencheu o dia com pequenas coisas que definitivamente não serviriam de exemplo de grandes feitos para a humanidade nem ao menos atingiriam a vida de outras pessoas. Só queria se sentir útil (mesmo que apenas para si mesma), ter a sensação de estar fazendo algo da vida, dando um novo rumo para as coisas. Também se preocupou em sair para ver gente, exercitar o corpo e comer coisas saudáveis. Ficou atenta para seguir à risca todas essas recomendações que leigos e especialistas acreditam fazer parte do manual para uma vida feliz. E é claro que todas as mudanças tinham que ter início numa segunda-feira, como todo mundo faz. Isso ainda a ajudaria a se sentir como todo mundo. A garota seguiu tudo a risca e praticamente de hora em hora se voltava para a agenda como a adolescente que abre o objeto que guarda grandes segredos. Ao fim do dia, cada linha já havia recebido uma marca de tinta verde com gliter. A menina sentia uma leve satisfação pelo dever cumprido, mas não sabia se aquele sentimento bom serviria também para os outros dias nem se aquilo a ajudaria a ser feliz de verdade. Já que não dá pra ter garantias de nada, o jeito é ir seguindo o mesmo ritual para ver no que vai dar. 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Em uma noite fria


Ela vai à cozinha, tentando não fazer barulho, bebe um copo de água e depois volta para o quarto. Bem no meio da noite. Quando deitou na cama ficou pensando porque se preocupou tanto em preservar o silêncio se morava sozinha e não acordaria ninguém com seus passos ou com a queda de um copo. Sentiu que a cama estava fria e não gostou de esperar aqueles minutinhos para que o calor do corpo e o dos cobertores se misturassem. Gostou menos ainda de não conseguir pegar no sono de imediato. Isso causou tamanha irritação que a cabeça começou a imaginar mil coisas e misturar todas elas fazendo uma grande confusão. Os pensamentos se agitaram tanto que fizeram muito barulho e o estômago, rabugento como de costume, foi logo mandando a cabeça ficar quieta porque ele queria sossego. Como não teve a sua ordem atendida ficou irritadíssimo e não quis saber de deixar a garota dormir. 

Sem poder rolar na cama, porque imediatamente sentiria frio, preferiu a câimbra. Apenas mais um desconforto naquela noite. Estava angustiada porque parte de seu corpo queria dormir e a outra parte não deixaria isso acontecer. Já que não dava pra dormir, ela tentou organizar os pensamentos. Não deu certo. Eles estavam animadíssimos com a possibilidade de serem os únicos a fazerem barulho naquele horário e também não obedeceram à coitada. Ela tentou então criar novas coisas pra colocar na cabeça como o planejamento para o dia seguinte. Foi um gesto bem inocente. Os novos pensamentos se encontraram com os velhos e começaram a disputar espaço. Veio aquela ansiedade para ver as horas passarem e então se concentrou na movimentação dos ponteiros do relógio. Maldita ansiedade! A menina até pensou em ler um livro, mas aquele que tinha na cabeceira era muito bom e o sono é apaixonado mesmo é pelo tédio. Acabou dormindo. Pouco, mas dormiu. Na hora de acordar, só tinha uma coisa pulando na cabeça porque todos os outros pensamentos estavam descansando, exceto um: preciso dormir.  

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Resgatando o que era bom


Ela torceu para chover, a chave sumir, a luz acabar ou simplesmente o professor não chegar. Não é que a menina não gostasse das aulas de dança, mas naquele dia queria mesmo sumir dali. O motivo era que com o passar do tempo foi percebendo que ninguém daquele lugar cultivava mais o entusiasmo dos primeiros dias de aprendizado. Apenas ela. Naquele dia a ficha caiu: as coisas não seriam mais como antes. A turma toda reunida e a chegada do professor indicavam a impossibilidade de escapar. Olhares de desânimo, gestos de má vontade e desculpas esfarrapadas estavam por toda parte. E como era triste o momento de encarar os exercícios em dupla. Ela cheia de alegria e empolgação batia de cara no muro construído pelo colega que queria apenas ver o tempo passar. E de preferência bem rápido. Daquele jeito, a tristeza se sentiu a vontade para chegar trazendo pelo braço o cansaço, a ansiedade e decepção. Como aquele encontro semanal, inicialmente tão esperado e agradável para todos, virou uma mera obrigação?

Às 13h15 tudo havia terminado. Enquanto tomava banho para se livrar do suor e tentar mandar pelo ralo os sentimentos ruins daquele dia, foi inevitável lembrar os bons momentos naqueles primeiros encontros com os colegas. Dava uma vontade de voltar no tempo e ao mesmo tempo de não retornar ao passado. Apenas ver ele se repetindo quando se sentisse fraca diante do desânimo alheio. E como seria fantástico poder reviver sensações boas que já foram embora. A menina faria isso várias e várias vezes como as pessoas que assistem um filme até decorar as falas dos personagens. Sentiria novamente o gosto de desembrulhar a caixa da boneca favorita, ganhada no natal, cada vez que a vida lhe presenteasse com uma nova decepção. Escutaria a voz do namorado dizendo, pela primeira vez, “eu te amo” todas as vezes que ele estivesse distante, não apenas fisicamente. Reviveria os elogios dados pelo chefe sempre que entregassem a ela um grande desafio. Seria a forma ideal de deixar a saudade dos instantes felizes puxar os sentimentos ruins e seguir para longe. Porque a água do chuveiro, coitada, só dá conta mesmo de livrar a menina do suor.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O primeiro vôo da menina


Era a primeira vez que a menina ia parar ali. E como em toda primeira vez, ela não sabia exatamente como se comportar. Lembrou do primeiro dia na escola, do primeiro beijo e da primeira depilação. Lembrar das primeiras vezes que já teve na vida não ajudava a formar um manual de como se comportar ali. Só lembrava que, mais uma vez, ela não sabia exatamente o que fazer. Olhava a mulher que passava de travesseiro e mala na mão e para o senhor que tirava fotos dos aviões que estavam na pista. Ela não tinha medo de andar de avião. Só achava estranho ficar a mais de 8.000 metros do chão em um ambiente fechado com 150 desconhecidos. Ficou segurando para não rir da demonstração que as aeromoças fazem do uso do cinto, da indicação das máscaras e das saídas de emergência. E rezando para não precisar se lembrar de nada daquilo, já que não tinha prestado muita atenção. Bem antes, logo na chegada ao aeroporto, experimentou o friozinho na barriga ao deixar a bagagem no balcão da companhia aérea sem saber de que maneira sua mala chegaria do outro lado. E se chegaria ao outro lado mesmo. Foi avisada de que era tudo muito tranqüilo, mas o túnel que leva à aeronave dava a sensação de que não havia uma luz em seu final.

Já sentada, deu de cara com a vista da janela e ficou encantada vendo a asa direita e a turbina. Queria acompanhar tudo. Depois de levantar vôo, os momentos de turbulência faziam a menina se sentir dentro de um ônibus passando por uma estrada esburacada. O quase imperceptível movimento da asa lembrava a suavidade do deslocamento de um pássaro com um toque do estilo mecânico provocado pela lataria. Nas duas horas de viagem, tentou se distrair com um livro, observando o sonolento passageiro que roncava e se assustava com o próprio ronco, com o bate papo de duas senhoras fofoqueiras e com o lanchinho servido durante o serviço de bordo. Mas a distração maior foi a tentativa de pouso que deu errado e obrigou o piloto a decolar novamente e aguardar um instante para novas tentativas. Por culpa de uma falha no trem de pouso, quem dormia logo despertou, aqueles que não se lembravam mais de Deus recuperaram a memória e os curiosos perguntavam, ao desconhecido mais próximo, o que poderia ter acontecido. Com tudo resolvido, a viagem chegou ao fim. A menina não teve medo de morrer, o que parece estranho para uma pessoa com medo até de não saber como se comportar. Vai ver é porque ela sabe que essas questões de morte são responsabilidade de outro alguém.    

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A menina e a felicidade


Ela era a terceira na fila pra comprar pão de queijo. Logo à frente, as suas duas amigas aguardavam enquanto um senhor trocava a bobina do caixa para atender aos clientes ansiosos pelo café da manhã. Como em toda fila, não teve jeito de escapar da velha estratégia utilizada para matar o tempo: conversar. Naquele dia, ela nem queria isso. Seria bom apenas esperar quieta. Mas do meio da conversa, na qual nem estava prestando muita atenção, saiu uma pergunta direcionada a ela: “Você é feliz?”. Ela, assim como qualquer pessoa normal, pensou imediatamente como era estranho alguém fazer esse tipo de pergunta numa fila às 8h da manhã. Só não pensou muito foi na hora de responder. Disse de forma triste, quieta e ao mesmo tempo educada que não. E ainda completou que não acreditava nessas coisas. Definitivamente percebeu que tinha feito algo errado. Aquela resposta provocou um silêncio estranho como se tivesse dito que estava grávida, ou era lésbica, ou usava drogas ou tudo isso junto. Parecia coisa meio proibida ou polêmica assumir em lugar público que você não é feliz. 

Na verdade, o que acontece é que a felicidade não estava ali fazendo companhia para a menina naquele momento. E a garota já sabia que ninguém consegue ficar colado a essa doce palavra de 10 letras o tempo todo, carregando pra casa, pro trabalho, pra festa e muito menos para o trânsito. A vida foi mostrando que felicidade é ocupada demais e não consegue ser a fiel dama de companhia em período integral. Ela aparece quando você é convidada para sair e vai embora quando a companhia te decepciona. Chega de repente quando você encontra um vestido lindo na vitrine, mas pede licença no instante em que as leis da física provam que ele não cabe em você. Surge como uma criança travessa na hora que te acorda de manhã depois de um sonho bom e, um tempo depois, vai procurar um brinquedo novo quando você encontra aquela pessoa desagradável. Envolve qualquer um que pode admirar a beleza de um pôr do sol e se desfaz quando o expediente dele acaba para começar o horário de trabalho da noite. Naquela manhã, enquanto esperava um pão de queijo, ela não queria dizer que era infeliz. Só entendia que a felicidade se parece com o vento: quando chega traz com ela coisas boas e vai embora. Na hora certa, lá está ela voltando.