sábado, 31 de dezembro de 2011

Depois da queda vem...



Tudo começou com um “Tudo bem”. A mentirosa frase dita e repetida tantas vezes a ponto de convencer muita gente de que era verdadeira. Só não conseguiu se mostrar da mesma maneira para quem pronunciava aquelas palavras. A menina nunca acreditou embora passasse a vida dizendo e dizendo de novo. E como mentira tem perna curta, essa daí tropeçou na primeira pedra mais gordinha que encontrou pela frente. De forma inexplicável, nada aconteceu com os joelhos da mentira, até porque a garota é que foi ao chão. Os dela sim é que ficaram ralados. E como demorou até aparecer alguém para colocar Merthiolate, soprar as feridas e fazer carinho dizendo que tudo iria passar. Com os joelhos já cicatrizados, ela se deu conta de que, com a queda, o estômago também havia se ferido de uma maneira bem profunda. Nem sopro nem carinho iam dar jeito. 

Quando não havia mais nenhuma maneira de disfarçar a dor, encontrou um desconhecido vestido de branco e com um objeto, meio parecido a uma corda, pendurado no pescoço. O rapaz tratou de dizer que para as coisas melhorarem ela deveria querer muito e se esforçar. De imediato ela não entendeu nada. Parecia obvio demais que a garota queria consertar o estômago, mas a coitada não fazia ideia sobre esse papo de esforço. Será que ele estava falando de ficar sem comer batata frita, bacon e sorvete? Tomar xarope com gosto ruim ou chá de boldo? Levantar peso? Percorrer grandes distâncias? Nada disso. Depois de meses ela entendeu que os maiores desafios dessa vida não estão em suportar grandes desconfortos, mas em mudar pequenas coisas. Elas exigem atenção demais aos detalhes, a força de se assumir fraco e a coragem para jogar fora aquilo que, aparentemente, não deseja perder. Parece que a menina está indo bem. De vez em quando ela ainda tropeça, mas logo dá um jeito de limpar a roupa e levantar como se nada tivesse acontecido. Em seguida, inevitavelmente acha graça e segue rindo por ai. 

domingo, 25 de dezembro de 2011

As intenções



Ela ganhou de presente dois livros: um que ensina a ter uma vida mais leve e outro que promete acabar com essa história de amores mal sucedidos. Parecem bons presentes, afinal livros são sempre legais, mas o que está por trás da entrega de um presente? Na prática, ninguém se preocupa em dar um embrulho bonito e um objeto escolhido com cuidado a alguém de quem não gosta. Quanto a isso não há dúvidas. Mas a garota ficou pensando o porquê de serem aqueles livros e não outros. Talvez um de aventura, um de comédia, uma biografia ou mesmo um de receitas. Sei lá. Na hora de receber os presentes, a gratidão e, em alguns casos a surpresa, tomam conta de tudo. O cheiro de páginas ainda não lidas, a textura da roupa que nunca foi usada e o sabor do primeiro bombom retirado da caixa preenchem o momento. Só que a menina não conseguia parar de pensar nos livros. 

O vestido novo e o chocolate voltaram para os papéis de presente, coisa que ela sempre fez tradicionalmente para ter o prazer de desembrulhar mais uma vez. Os livros ficaram ali nas mãos. Não que eles tenham maior ou menor importância, mas era impossível para ela não se ver refletida neles. Principalmente porque foram comprados por alguém tão próximo. Era constrangedor e, ao mesmo tempo, um alívio saber que alguém via o que estava acontecendo com ela. Eles eram uma forma sutil de dizer que os olhos da menina contavam do peso do cansaço e da dor de mais um fracasso. A garota retribuiu a gentileza com um abraço e começou a leitura de imediato. Achando que ali encontraria as respostas que procura. Mesmo sabendo bem que as respostas não estariam naquelas letras. Seriam no máximo pistas, ou nem isso.  Por estranho que possa parecer, alguém já tinha contado à menina onde estava o que ela tanto procurava. Faltou dizer onde ela pega o visto, o passaporte e as passagens para viajar até lá.

sábado, 17 de dezembro de 2011

25 de dezembro


Ela passou na porta da loja e não resistiu. Ah que vontade de comprar! Viu um pinheiro de natal de dois metros de altura todo decorado. Parecia um daqueles das casas das Helenas nas novelas do Manoel Carlos. (Aqui não farei a piadinha de que o autor lembra o bom velhinho) Na árvore, as bolinhas todas vermelhas e de vidro como as de antigamente. Nos sinos dourados, bastava encostar bem de leve para escutar aquele barulhinho inconfundível. Os laços de fita e caixinhas decoradas disputavam, gentilmente, espaço com anjinhos, papais noéis e outros enfeites ricos em detalhes. Infelizmente quem não era rica era a menina. O objeto tão desejado não cabia nem no orçamento nem no pequeno apartamento alugado. Voltou para casa com algumas poucas sacolas. Dentro de uma delas, um pinheirinho de 50 cm. Incomparavelmente menor que a animação da garota com decorações para o fim de ano. 

E esse nem foi um problema. Afinal, a árvore foi enfeitada com muito carinho e bom gosto. Ela mesma escolheu onde seria pendurada cada coisa e passou um bom tempo na loja até encontrar cores, texturas e formatos de acordo com seu estilo. Tudo preparado para ela, parecido com ela! Ao final, faltava colocar na ponta a estrela, brilhante e imponente a ponto de pretender transmitir a mesma beleza daquelas que enfeitam o céu. Embaixo da árvore, um presépio quase tão simples quanto a cama improvisada que recebeu aquele menino no dia 25 de muitos anos atrás. E bem do lado a garota colocou umas caixinhas de presente. O perfume que estava precisando, um pijama para substituir aquele que já estava velho demais e uma caixa de bombons. Coisas simples compradas para ela mesma, que seria a única pessoa a passar a noite de natal ali. Os amigos estariam ocupados demais com as famílias. E a família dela, muito longe, não apenas fisicamente. Mesmo sozinha, acendeu velas e preparou uma ceia caprichada. Ali ela entendeu que a história de que é ruim cozinhar para uma pessoa só, é mentira. Ás vezes a gente pode ser mais especial que uma multidão.     

domingo, 11 de dezembro de 2011

A reta final


Ela está ficando velha. De verdade. E não é porque chegou mais um aniversário. Até porque, para o bem ou para o mal, ainda falta quase um ano inteiro até se aproximar a tal data tão temida quanto esperada. O problema é que ela sente dor nas costas. E mesmo passando mais de 8 horas por dia sentada em frente ao computador ela jura que o motivo não é esse. Atribui à velhice cada dorzinha na hora de caminhar e pegar objetos do chão. Além de perder um pouco do preparo físico, a paciência está indo embora, com uma velocidade tão grande quanto aquela que a menina conseguia atingir há tempos atrás. Os problemas não são as filas dos bancos, os atrasos dos ônibus nem a lerdeza da internet. Ela está cansada de aguardar a sua vez de realizar os sonhos que já deixaram de ser sonhos para um monte de gente. Está impaciente com pessoas insistentes em dizer que a hora certa vai chegar. E como a reta final se aproxima, também quer respostas mais imediatas e, ao mesmo tempo, sente saudade de quando apenas vivia guardando a ilusão de que elas um dia viriam. 

As piadas viraram um assunto complicadíssimo. São machistas demais, preconceituosas demais, pornográficas demais, adolescentes demais, infantis demais ou sem graça demais. Parece que o contexto de cada uma delas ficou meio separado do tempo em que a menina vive. Também perdeu o gosto e a vontade de experimentar o novo. As músicas preferidas que o digam. São ouvidas a exaustão na mesma sequencia que já foi decorada sem maiores dificuldades. E não há espaço para conhecer os lançamentos. Pelo menos de falta de memória ela não sofre, o que para algumas situações nem chegaria a ser exatamente um problema. Com as habilidades intelectuais não atingidas de forma drástica pelo tempo, isso pode ser um indício de que a tal sensação de velhice não passe de uma fase de mau humor ou de descrença nas coisas da vida. O correr dos dias deve trazer ao menos essa resposta, ou não. Pelo visto, terá que se virar sozinha para descobrir isso também.            

sábado, 3 de dezembro de 2011

Quando virou joaninha


Uma capa vermelha com bolinhas pretas. Na cabeça, um cabelo muito bem preso com o apoio técnico de um gel desses que deixam os fios grudados como gêmeas siamesas. Para completar, um arco com duas anteninhas, colant preto e sapatilha. Era uma fantasia de joaninha para o baile de carnaval da escola. A menina tinha naquela época seus sete anos, e estava feliz com a roupa apesar do medo da reação dos outros. Depois de uma conversa com a mãe, sempre habilidosa na arte do convencimento, a garotinha tomou coragem para sair de casa. Um vizinho logo elogiou, dizendo que estava bonita. Ela ficou com vergonha, mas o comentário ajudou a impulsionar os passos lentos, medrosos e com vontade de nunca chegar, até a porta da escola. Entre piratas, bailarinas e fantasias que ela nunca entendeu do que se tratavam, surgiu a joaninha. Ficou quietinha ao lado da irmã que só esperava a abertura do portão para ir embora. De repente, a menina percebeu alguns dedos apontados em sua direção. Uns acompanhados de risadas e outro, em especial, carregava consigo uma gargalhada cruel e o comentário que nunca foi esquecido: “Parece o Chapolin Colorado!”. 

A reação foi imediata. Provavelmente uma pessoa nunca se encolheu tão rápido quanto ela. Ficou ali bem pequena, bem diminuída, quase do tamanho de uma joaninha de verdade. Só que joaninhas não choram, muito menos pedem à irmã, desesperadamente, para levá-la correndo pra casa. Com o pedido atendido, foi para o quarto gastar todas as lágrimas que tinha direito. O colo de mãe e os argumentos de sempre convenceram a menina a voltar para a festa. Só que já não adiantava mais. Não seria como antes. Quem voltou para a escola não foi a joaninha, era apenas uma menina de camiseta rosa, bermuda jeans e olhar triste. A condição para sair do quarto não poderia ser outra, jogar de lado a fantasia. No meio de palhaços, mágicos e florzinhas, voavam confete e serpentina por todos os lados. Até mesmo no canto onde a menina se refugiava. Só que por lá eles chegavam e perdiam a cor imediatamente. Enquanto isso, ela aprendia que não seria nunca mais uma joaninha. 

domingo, 20 de novembro de 2011

Para achar o equilíbrio


Ela aprendeu a andar de bicicleta sem cair nenhuma vez. E o aprendizado foi bem tarde, fora daquela época em que as crianças vão treinando com bikes pequenas. Daí tiram a rodinha da direita, depois a da esquerda, em seguida contam apenas com a segurança trazida pelas mãos do pai e, mais tarde, vão confiar em si mesmas e na sorte. A menina começou a praticar, com a bicicleta do irmão, quando tinha 15 anos. Ela se sentou apoiou as mãos e os pés já estavam pedalando. Claro que o irmão ficava ao lado segurando a bike para evitar os tombos. Quando percebia que a garota estava um pouco mais segura, ou melhor, menos insegura, ele soltava estrategicamente as mãos até a menina se dar conta de que estava andando sozinha. Naquele instante ela imediatamente se desequilibrava e começava a gritar. E lá estava ele para evitar a queda.  

Evitando o contato com o chão e fugindo da dor de um joelho ralado ou braço quebrado ela foi evoluindo até aprender a virar, descer ladeiras, subir morros e pedalar em pé. Na época em que já seguia sozinha, a segurança de quem havia aprendido estava ali. Mas de nada serviu quando a barra da calça ficou presa na corrente da bicicleta no meio de uma descida. Sem ninguém por perto, nem é preciso dizer o que aconteceu. Finalmente ela entendeu que para não cair era preciso cair. Nem que seja uma única vez. No fim das contas, nenhuma conseqüência mais séria, mas o medo de perder o controle e ir ao solo nunca foi embora. A menina até conhece o fabuloso segredo que bailarinas e acrobatas usam para fazer aquele monte de giros e se manterem de pé, inabaláveis. Basta focar em um ponto a sua frente. Só é preciso esquecer o que está ao lado, manter a cabeça em pé e resistir à vontade de olhar para trás. Mas até isso exige treinamento. Que pena...    

sábado, 12 de novembro de 2011

Hoje eu vou pro lado de lá


Ela está indo embora. E mesmo que sinta vontade não poderá mais voltar. Vai para um lugar diferente onde não imaginava ter que ir tão cedo, ou melhor, sabia que a hora chegaria, mas não queria. O jeito é levar junto todas as coisas que são dela de verdade. O cãozinho de estimação fará o trajeto numa caixa de transporte bem confortável e linda: rosa com prata. Mas antes de acomodar o bichinho para a viagem ela precisa esvaziar suas gavetas e preencher as malas. Começou o trabalho de baixo para cima e logo encontrou cartões de natal antigos, da época em que as pessoas não achavam brega entregar isso aos amigos no fim de ano. Algumas figurinhas repetidas de um álbum que nunca conseguiu completar se abrigavam no cantinho. A caneta bonita que ganhou junto com uma agenda e ambas não foram usadas porque eram tão lindas. A tinta da caneta foi poupada para não acabar nunca e agora que o tempo passou está seca e já não serve mais. Já a agenda, que é de 2002, deveria ter sido aproveitada há 9 anos atrás, quando era atual e não estava com as folhas amareladas. 

Logo ao lado, os adesivos que não escaparam da crueldade do passar dos anos: estão desbotados e não conseguem se prender a nada. Foi assim que a garota aprendeu a lição que levará para o resto da vida, usar imediatamente qualquer adesivo que tiver nas mãos. Certas coisas definitivamente não podem ser guardadas. Na parte de cima, envelopes, ingressos de shows e laços de fita que ajudaram a fechar papéis de presente jogados no lixo ou usados como embrulho mais uma vez. Também estavam lá cartões e uma foto de um antigo passado que parece tão recente. Esses não eram objetos dela e nunca foram na verdade. Mas estavam ali. Entre os vários destinos acabaram sendo enviados para o dono de fato. Como deveria ser. Agora naquela gaveta não há mais nada, só o vazio. O que não deixa de ser alguma coisa, né?! Como não tem mais o que fazer ali, a menina segue. Acabou de esvaziar apenas a primeira gaveta.      

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O menino e a menina


Ela resolveu sair de casa com unhas coloridas. Uma combinação de três cores que faziam um efeito degradê. Fez achando que ninguém iria perceber, afinal, quem que fica reparando nas unhas dos outros? Mas ele percebeu. Enquanto levava um copo de refrigerante da mesa até a boca, escutou o menino dizer: “Suas unhas são bem diferentes”. A garota logo pensou que ele tinha achado ridículo e foi logo perguntando se o menino quis dizer que estavam estranhas. Ele disse que não. E depois de um sorriso falou que ela tinha mãos lindas. Quem que fica reparando a mão dos outros, gente? Tímida com o elogio, ela começou a observar as próprias mãos discretamente, os dedos compridos a pequena cicatriz do dia em que estava fritando batatas em casa e o pedacinho de cutícula não removido pela manicure. Meio que num susto, sentiu uma mão quentinha se aproximar e se juntar às dela. 

Ficaram as três mãos apoiadas na mesa do bar enquanto o garoto puxava papo com assuntos que iam perfeitamente se cruzando. Parecia tudo parte de um roteiro muito bem construído já que eles se entendiam tão bem e as risadas eram quase simultâneas. O tempo foi passando e eles não perceberam. Nem se deram conta de que as outras pessoas da mesa se afastaram. A garota ficou ainda mais vermelha quando descobriu isso. Tomou coragem para levantar a cabeça e encontrou dois olhos muito bonitos. Não eram das cores que costumam atrair a atenção dos outros, mas de um castanho escuro bem simples como um monte de coisas boas que existem na vida. E foi justamente bondade que ela viu misturada nos tons de castanho que só eram percebidos por quem prestasse muita atenção. Um degradê de castanhos. Se achando invasiva demais por ficar olhando tanto tempo para ele, abaixou a cabeça novamente e disse que precisava ir, afinal já era tarde. Mas não tarde o bastante para que o garoto segurasse a mão dela e dissesse: “Então vamos”.  

domingo, 30 de outubro de 2011

É preciso lembrar


Bastou alguém contar pra menina que, quando a gente encosta a cabeça no travesseiro, sonha com coisas que fazem parte dos nossos desejos mais secretos pra coitada transformar o sono em obsessão. Fica mal humorada toda manhã quando acorda e percebe que esqueceu o que tinha sonhado. Sabe que sonhou, mas não lembra o que foi. Anota num caderninho rosa todo bordado que ganhou de presente todos os detalhes quando consegue se lembrar. Escreve tudo mesmo, cor da roupa, cheiros, texturas e até nomes de quem resolve aparecer por lá. Só não tem coragem de contar algumas partes que estão ali. É que costumam aparecer pessoas quase desconhecidas em situações estranhas e gafes piores que sair de casa de pijama ou tropeçar em alguém que está dormindo no chão da rua. Ás vezes a vida real se mistura com cenas de filmes, novelas ou notícias de jornais ao longo dos sonhos. Daí a irritação é maior. Ela não consegue saber se aquilo tudo fazia parte do universo vivido enquanto dormia só porque tinha visto aquelas coisas ao longo do dia. Será que teria alguma relação com algum desejo dos mais secretos? Droga! Não dá pra saber.

A garota está tão preocupa com esse papo de sonho por causa das coisas que quer fazer na vida. Na verdade, isso chama tanta atenção justamente porque ela não consegue saber que coisas são essas. Como toda pessoa esperta, tentou pesquisar na internet para achar a tão esperada resposta. Entre livros de autoajuda, depoimentos de pessoas que largaram tudo para viver em um templo budista (nada contra templos budistas ou de qualquer outra religião) e dicas para mudar o visual, ela percebeu que o senhor Google não seria capaz de responder a essa pergunta. Passou então a observar a vida dos outros. Pessoas que querem ver o mar, descobrir o gosto de comer insetos na China, casar com um vestido de R$20.000 ou mesmo conhecer o Beto Barbosa. Pois é, tem gosto pra tudo. (Novamente, nada contra quem curte Adocica, Preta ou Dançando Lambada). A menina logo viu que tinha alguma coisa errada com ela. Todo mundo guardava na ponta da língua algum grande sonho, o maior desejo na vida, por mais estranho, trivial ou grandioso que fosse. Ela não. Até tenta pensar sobre isso durante o dia para desvendar o mistério, mas as coisas da rotina, o trabalho, os estudos e os problemas dizem ter prioridade e que receberam a senha primeiro. Então a menina viu que o jeito é sair por ai tentando descobrir o sonho nos sonhos. Parece uma tarefa difícil, e realmente tem sido, mas já passou tempo demais e a resposta precisa vir.        

sábado, 22 de outubro de 2011

É preciso complicar?


“Luiz, quer dizer que você não vai não? Então aproveite sua sexta-feira!” Foi com voz irritada que a mulher disse as duas frases e desligou o celular. Já com seus 30 anos, estava ela maquiada e com roupa bonita parecendo preparada para um encontro especial. Encontro esse que não aconteceria mais. A mulher havia marcado, com o tal Luiz, namorado dela, de se verem em frente ao ponto de ônibus e, quando ela já estava se preparando para descer, descobriu que ele não iria mais. Tentou passar certa tranqüilidade, mas não conseguiu. Respirou fundo, enxugou uma lágrima que borrou o delineador e telefonou novamente fingindo que a ligação havia apenas caído. Essa desculpa parece não ter funcionado de início já que ela teve que repetir algumas vezes: ”Se eu tivesse desligado na sua cara não teria ligado de novo. A ligação caiu”. Depois de insistir várias vezes que ele poderia fazer o que quisesse e que isso não estragaria o fim de semana dela, desligou o telefone. Dizendo antes que deixaria o celular ligado, caso ele quisesse telefonar. Ela não se moveu do banco do ônibus onde estava. Seguiu de cabeça baixa de volta para casa.

A menina acompanhou toda a cena de perto. Entrou no coletivo pouco antes de tudo acontecer e estava feliz diante da possibilidade de ir para casa descansar depois de um dia de trabalho. Para ela e para a mulher, chegar em casa carregava significados muito distintos: a vitória e a derrota. A mulher, tão bonita e arrumada, acabava de jogar na lata do lixo horas de preparação e expectativas. E o golpe vinha justamente de quem deveria dar carinho: o namorado. A menina estava despenteada e mal arrumada após um dia corrido com trabalhos e compromissos. Cansada como nunca e com os pensamentos agitados. Era confuso ver uma mulher sendo mal tratada pelo companheiro e se resignando com a possibilidade de voltar para casa triste enquanto ele provavelmente se divertia e estava alegre. Era estranho ver a ligação sendo encerrada com uma espécie de pedido disfarçado para que o tal Luiz ligasse, uma vez que seja, no fim de semana. Ele não é namorado dela? Por que não ligar? Por que não sair? Por que não se importar? A garota preferiu não pensar mais no assunto, pegou o mp3 para se distrair. Tem coisa que é tão simples que o povo complica pra ver se dá conta.

domingo, 16 de outubro de 2011

Enquanto ele não vem


Depois de tantos sorrisos, risos, gargalhadas, um momento de tensão. A chuva atrasava ainda mais o momento de ir embora, o que era bom já que não encontrava as amigas fazia muito tempo. Mas a hora foi passando e a menina se viu ás 23h10 em um ponto de ônibus deserto, em uma rua deserta, em frente a um hospital estranhamente deserto. Alguém explica como que pode porta de hospital ficar vazia? O máximo que dá é pra estar menos cheia, vamos combinar. E pra completar, chovia. E esse negócio de água caindo do céu a noite deixa um clima meio estranho, quase de filme de terror. Mesmo não tendo quase nenhuma cena de filme de terror gravada na chuva de noite. Para muita gente essa situação poderia ser tranqüila, mas não para ela.  A garota se sentiu confortável quando chegaram dois velhinhos que conversavam enquanto o ônibus não chegava. Afinal de contas, quem desconfiaria de dois velhinhos de camisa pólo que usavam a tradicional combinação de sandália de couro e meia, típica dos homens da terceira idade? Melhor do que isso, só se aparecesse um casal carregando um bebê que acabava de sair do médico. 

Fato é que a garota estava em um momento meio egoísta. Torcendo para que o ônibus dos velhinhos não chegasse, pelo menos não antes do dela, ou que aparecesse um bendito casal com uma criança. Estranhamente traria certa segurança mesmo aquelas pessoas possuindo uma fragilidade ainda maior do que aquela que a garota levava consigo. E a cada momento que um dos senhores fazia algum movimento, o coração disparava, não por medo deles, mas por achar que o ônibus que se aproximava ampliaria, ainda mais, o medo da solidão. De repente, a preocupação passou a ser em ficar acompanhada. Olhava para todos os lados com medo da chegada de alguém: um louco, assaltante, bêbado ou coisa do tipo. O ônibus não chegava e estando sozinha só poderia sofrer as conseqüências da ação do vento frio e das gotas geladas. Já bastava. Olhou para trás e viu um homem se aproximando. Ele logo tratou de dizer boa noite e contar, de maneira frenética, que trabalhava em uma churrascaria e tinha conseguido sair mais cedo do emprego por um problema na churrasqueira. Ela sentiu medo. Nada contra quem ganha a vida assando carne, mas tá difícil achar que hoje em dia um estranho poderia aparecer e puxar papo, na rua às 23h30, apenas para ajudar a passar o tempo. A menina segue a vida sendo desconfiada de tudo. E não tem como ser diferente. Fugiu no primeiro taxi que apareceu.    

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O revólver e a bolsa


Estava cedo, dia claro, pessoas indo para o almoço ou voltando pro trabalho. Ela andando na rua com o estômago mais do que cheio, efeito de um sanduiche, batatas fritas e um copo de 500 ml de refrigerante. Nas mãos, um embrulho para dar de presente a alguém muito especial. Um pacote leve, mas de muita importância, embora não custasse nenhuma fortuna. Perto de uma banca de jornal, uma mulher e um homem surgem bem na frente da garota. A mulher chama o cara de vagabundo e empurra a bolsa em cima dele. A menina pensa logo se tratar de uma briga de namorados e segue no mesmo ritmo enquanto se dá conta de que entre aqueles dois não havia nenhum relacionamento de intimidade. A bolsa só era entregue porque nas mãos de quem a recebia estava um revólver. Em poucos segundos, o homem sobe na garupa de uma moto com os dois objetos na mão e simultaneamente ele e a mulher tomam caminhos distintos. 

Ele precisa apenas esperar até que a moto se dirija a um lugar seguro e o roubo terá êxito. A mulher se apressa em pedir emprestado, a um estranho, o celular para chamar a polícia. Enquanto tudo acontecia, a menina acompanhava cada movimento de perto. Não que ela tivesse feito essa escolha, mas a situação estava bem ali de forma tão inacreditável que a única reação possível foi a naturalidade. Continuou andando até chegar ao seu destino, agora acompanhada de pensamentos que ela não previa e não conseguia mandar embora. Não gritou, não desmaiou. As mãos só conseguiram ficar trêmulas bem longe dali. Ela pensava na mulher que agora estava na rua sozinha com a sensação de perda, já que não veria mais a bolsa. Ah, e como perder dói. Mesmo que a bolsa fosse velha e não tivesse nada de valioso lá dentro. Mesmo que a polícia recuperasse o objeto algum tempo depois. Não ter mais o que se tinha antes, a bolsa, a calma, a sensação de segurança. Ah, e como perder dói... 

domingo, 9 de outubro de 2011

A menina e o livro


Dois trabalhados da faculdade para entregar, um livro inteiro para resumir, estudar inglês e espanhol para as provas do curso. A menina tinha tantas obrigações que não sabia por onde começar. E como de costume estava cansada. Cansada de tudo. Cansada de um tanto... Não que trabalhar e estudar, ao mesmo tempo, seja a coisa mais grandiosa do mundo, afinal, tantas pessoas conseguem conciliar isso e ainda arrumam tempo para criar filhos ou montar uma banda. Mas fazer as duas coisas se torna realmente algo grandioso e, principalmente, complicado quando quem inventa de fazer isso é você e não um amigo, vizinho ou conhecido. A garota finalmente se deu conta disso. Está próxima de mais uma sexta-feira e com tudo brilhantemente arquitetado. Sábado, após a aula, começaria efetivamente o fim de semana e poderia usar o período da tarde para iniciar um dos trabalhos. O resumo ficaria para a manhã de domingo e a tarde seria dedicada ao estudo de idiomas. Durante a noite, mais um tempinho para organizar a vida acadêmica, limpar gavetas, lavar roupas. 

Tudo planejado tão certinho que tinha mesmo que dar errado. A tristeza e o desânimo, somados ao convite da irmã para sair, fizeram a menina se dar conta de que a agenda não incluía nada escrito sobre descanso. Muito menos lazer. Já estava tão acostumada a deixar essas coisas fora da lista que precisou se sentir mal, mas muito mesmo, para cair a ficha. Também encontrou na mesa do quarto o livro que ganhou de aniversário. Aquele que depois de ser desembrulhado fez os olhos da menina brilharem, mas após três semanas ainda não tinha recebido a chance de ter ao menos uma página lida. Após a tarde de sábado, no cinema, ela resolveu chegar em casa, ignorar todos os planos e ler o livro querido. Ele certamente não cairia em nenhuma prova e dessa vez isso não importava. Era a chance de se desprender um pouco do previsível, justamente porque a vida é assim. As coisas podem não ser como o esperado, aliás, elas geralmente não são. Mesmo.

domingo, 2 de outubro de 2011

Do outro lado da vitrine


Eles ficaram se encarando. Ela na rua e ele do lado de dentro da vitrine. Da primeira vez, logo que a menina viu aquele potinho de doce na padaria da esquina, andou bem devagar para ficar olhando por mais tempo. Era branco com pedacinhos coloridos, daí não teve como não lembrar rapidamente da sobremesa que ela sempre fazia para a família no natal. Parecia o mesmo doce que ela tratava como uma espécie de tradição só dela: fazer as gelatinas de cores bem diferentes, cortar em cubinhos e misturar ao leite condensado com creme de leite. Foi seguindo seu caminho e o potinho ficou ali onde estava. No dia seguinte, ela fez o mesmo trajeto e lá estava ele de novo, no mesmo lugar. A garota parou por alguns segundos e pensou na possibilidade de experimentar. Instantaneamente surgiu uma série de desculpas para ir embora como o compromisso, a pressa, o tamanho da fila, a falta de dinheiro ou a preguiça. Até certos argumentos bestas como o calor, medo de o doce estar estragado e o cansaço se aproximaram caso as outras desculpas não conseguissem ser convincentes. 

Fato é que por vários dias ela esteve ali naquela porta e sequer conseguiu entrar. Algumas forças a puxavam para o outro lado da rua e outras a empurravam para longe da padaria. Os dias se passaram e ao olhar novamente para a vitrine sentiu uma leve irritação. Um monte de saladas de fruta havia roubado o espaço, quase que sagrado, daquele doce. A garota encarou como coisa do destino e tratou de pensar que aquele era um sinal para que a aproximação não acontecesse, afinal, justamente no dia em que iria realmente comprar, não poderia. E na manhã seguinte, lá estava ele no lugar reservado. As velhas desculpas apareceram, mas a menina só se deu conta quando se sentou e estava com o potinho nas mãos. O preço foi caro em relação à quantidade, mas não houve arrependimento. Também não foi o melhor doce que ela comeu na vida. Só representava algo que a garota tanto queria e conseguiu. E isso já era bom.      

domingo, 25 de setembro de 2011

A velha e a árvore


Durante três meses a cena se repetiu. A menina andando apressada para chegar ao trabalho passava por uma rua de árvores grandes, troncos grossos, galhos que brincavam de se cruzarem e muitas folhas. Muitas mesmo. Tantas que o vento fazia seu trabalho levando várias delas ao chão sem que as copas sentissem falta. Naquele dia, quem sentia falta mesmo era a menina. Algo não estava no lugar de sempre. Bem próxima ao tronco de uma das árvores, uma senhora de cabelos compridos e brancos permanecia ali sentada, rodeada por seis sacos plásticos pretos bem cheios. Como aqueles pra colocar lixo. Parecia material para reciclagem, mas também dava para ver, em um que estava aberto, um pacote de biscoito, uma garrafa de água e três bananas. Em outro, pedaços de pano um pouco sujos que pareciam roupas. A senhora estava sempre com o mesmo vestido: de mangas curtas, fechado com botões na parte da frente, tecido branco meio puído e estampa de pequenas flores vermelhas. 

Às vezes penteava o cabelo, abria cada um dos sacos e organizava com cuidado o que estava dentro ou apenas olhava o movimento. A menina passava e observava tudo, só não tinha coragem de olhar para o rosto daquela mulher. Talvez coragem não seja a palavra certa, mas algo impedia o encontro dos olhos das duas. Algo que a garota não sabia o que era, mas que se perdeu em um momento de distração. Naquele rosto de quem já viveu tanto tempo havia um ar de tristeza, mas não era culpa da falta de dentes que dificultava um sorriso. Os olhos eram baixos e opacos. No dia seguinte, a senhora não estava mais lá. A rotina de encontrar aquela mulher ali, todos os dias, durante os últimos três meses se perdeu. Uma cena tão simples e sutil que só foi realmente percebida com atenção quando não estava mais lá. No lugar, um homem descansava em cima dos sacos que cercavam e ofereciam certa proteção para aquela senhora. A garota continua seguindo apressada por aquela rua, agora tentando se acostumar com o fato de que as coisas mudam. E imaginando onde estaria aquela senhora.        

domingo, 18 de setembro de 2011

Apagando velas


Ela estava voltando para casa. Dessa vez resolveu seguir o caminho, pela rua principal do bairro, a pé. Foi andando e encontrou um portão de garagem meio aberto com uns poucos balões em volta, cada um de uma cor diferente sem muita pretensão de estarem combinando. Aliás, a presença deles ali era mais importante do que o fato de serem uniformes ou em pares de tonalidades. Os passos da menina começaram a se tornar cada vez mais lentos. A curiosidade tomava conta e era preciso saber o que acontecia lá dentro. Ela conseguiu olhar por pouco tempo, para não ser indiscreta demais. Mas foi o suficiente para não esquecer a cena. Atrás daquele portão marrom com as pontas levemente enferrujadas, mais e mais balões. Um pouquinho de cada cor como se cada pessoa que estivesse lá dentro tivesse levado um pacote pequeno para ajudar na decoração. Alguns deles estavam envolta de um retrato, colado bem ao centro da parede. Na foto, uma criança, quase pré-adolescente, vestida com roupa de festa.

Logo abaixo, uma mesa velha que parecia que não suportaria aquele bolo cor de rosa tão grande acompanhado de pequenos docinhos tão juntos lembrando um forro. O barulho, de apenas algumas conversas e nenhuma música, era estranho por se tratar de uma festa, mas as coisas não pareciam menos alegres. Alguns meninos olhavam atentamente para os brigadeiros esperando uma autorização para comer ou provavelmente a distração dos adultos. Todos, em especial as garotas, usavam roupas simples, mas que pareciam novas e escolhidas com cuidado. A aniversariante ainda não estava naquela garagem promovida temporariamente a salão de festas, provavelmente cuidava de cada detalhe, unhas, cabelo e maquiagem, antes de encontrar as pessoas queridas e receber os presentes. Num descuido, a menina que observada tudo da rua foi percebida e ao mesmo tempo confundida com algum convidado desconhecido. O convite para entrar, feito com um aceno, era a indicação para a hora de ir embora. Poderia ter entrado, mas preferiu seguir apenas com aquela lembrança.

domingo, 11 de setembro de 2011

Um bom travesseiro


Ela abriu a porta para trancar logo depois. Apagou a luz e assim que encostou a cabeça no travesseiro não tinha outra alternativa: começou a chorar. As lágrimas saiam com facilidade espantosa, sem que fosse preciso fazer todas aquelas expressões e caras feias que as pessoas normalmente exibem quando querem chorar. E a menina nem queria chorar, na verdade. Mas precisava. Era tudo muito natural. Talvez porque a dor já estivesse presente por tempo demais, ou então, porque se dependesse de forças para produzir o pranto não sairia nem uma gota. Em meio a pensamentos confusos e tantos problemas lutando para se tornarem o centro das atenções, uma coisa não fico despercebida. Tá certo que dizem que mais de 60% do nosso corpo é água, mas a menina não imaginava que poderia sair tanta água de seus olhos. O travesseiro parecia uma toalha muito bem utilizada após o banho. O cabelo também não escapou, a chapinha foi dizendo adeus, e a garota antes tão vaidosa nem deu importância. 

Em meio a tantas coisas ruins e complicadas de digerir, ela buscava uma calma que não vinha. A vida já não estava lá essas coisas, o remédio não fazia mais efeito, o que motivava antes perdera a graça. E a cereja para completar esse bolo já tão recheado de problemas foi mais um dia ruim. Ruim não, péssimo. A garota foi aprendendo, da pior forma possível, que não poderia mais sair por ai confiando nas pessoas. Mas quando achou que seria possível relaxar e não ser assim tão radical, levou um empurrão. Pelo visto a impressão de antes estava longe de ser exagerada. As lagrimas foram parando de sair e a menina achou que pudesse ser por falta de água para colocar pra fora. Também ficou meio tonta e com a cabeça confusa. Não era desidratação, apenas o sono chegando. O choro foi abrindo espaço para o cansaço de forma discreta e quase imperceptível. No dia seguinte, a esperança de algo bom que poderia surgir não estava nos olhos. Eles estavam ocupados demais tentando não parecer tão vermelhos e inchados.

domingo, 4 de setembro de 2011

O que fazer com o tempo



Ela tem sono, mas dorme pouco. Isso não é culpa das preocupações, embora sejam muitas.  Há seis meses atrás, os problemas eram quase os mesmos e ela dormia o dia praticamente todo. A garota foge do sono, não por causa de pesadelos, até porque na hora de colocar a cabeça no travesseiro sabe bem separar fantasia da realidade. Pelo menos nesses momentos a menina sabe. Foge do sono porque precisa. Acontece que para ficar bem ela inventou uma estratégia maluca: ocupar todo o tempo. Dessa forma, não sobra espaço na agenda para escrever certas tarefas como sofrer, chorar, lembrar. Trabalho, trabalho extra, aula, aula extra, leitura, leitura extra. Tudo o que já era muito, ganhou um extra. E no meio de tudo ainda aparecem aquelas coisas não programadas, ou seja, extras já na essência. A menina está exausta. Fica um pouco tonta quando chegam às 21h, mesmo que esteja na rua. Já esqueceu momentaneamente o número do apartamento da irmã duas vezes. E olha que a garota vai até lá pelo menos um dia na semana.

Vive correndo. Não sabe como é ir andando para pegar o ônibus faz tempo. Vai depressa para o banheiro também, mesmo que não esteja com tanta vontade assim. A pressa para o almoço existe mesmo que não haja fome. A irritação com o tamanho da fila que não anda ficou ainda maior. O engarrafamento, sempre grande, tomou uma proporção gigantesca que só ela vê. Tudo é vontade de fazer o tempo passar, de querer gastar cada minuto, de preferência com urgência. A menina usa truques para acelerar os minutos, tenta enganar as horas, mas é sempre ela a fazer papel de boba nessa história. O tempo já percebeu essas artimanhas e, talvez por isso, continua irredutível. Segue como quer. Pode ser que um dia quando a menina entender o porquê da ansiedade ele resolva cooperar. Só que quando isso acontecer, a menina não vai mais precisar dessa ajuda. O tempo da menina e o tempo do tempo serão um só.           

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Baratas no ônibus



Já faz mais de uma hora que ela está sentada no ônibus, parada. Ele também faz o mesmo. Fica ali quietinho com o motor desligado e portas abertas para entrar um ventinho que resolve não aparecer. Há um tempo atrás, ele andou uns 10 metros, mas foi só. Transito bem parado. Disseram pra menina que é por causa de um acidente, mas ela nem deu tanta atenção. Só pediu a Deus pra que as vitimas da batida estivessem bem. As pessoas dentro do ônibus vão todas perdendo a paciência e descendo para seguir o resto do caminho a pé. Um trajeto tão longo que a garota nem ousou arriscar. Uma senhora resolveu trocar o salto alto por um chinelo que trazia na bolsa. Assim seria menos dura a caminhada. A menina preferiu ficar dentro do coletivo escutando música, escrevendo e fazendo, ao mesmo tempo, a coisa que mais detesta na vida: esperar. As coisas iam se resolver mesmo... O caderninho ajudava a manter a ansiedade longe. E como era bom estar naquela situação sem se sentir em pânico. Será que a vida estava voltando ao normal? 

Lá fora, aquele bando de gente andando na mesma direção lembrava o dia do fim do mundo que ainda não aconteceu. Dentro do veículo, ela escuta um burburinho, mas não consegue descobrir de imediato do que se trata. De repente, ela entende porque algumas mulheres estavam discretamente tirando os pés do chão e fazendo cara de nojo. A menina se vê rodeada por pequenas baratas. Algumas ela até consegue matar, mas aos poucos outras vão surgindo. Falando em nojo, no ônibus ao lado, um homem fica olhando insistentemente para a menina enquanto beija uma mulher. Parece ser a namorada. O tempo passa e, como o veículo não consegue andar nem mais um metro, o cobrador sugere aos poucos que não decidiram seguir a pé que saíssem para entrar em um veículo da mesma linha que espertamente foi parar na pista de carros. A menina vai o restante da viagem em um coletivo cheio. Está em pé e só consegue colocar rabiscos no bloquinho que segura desajeitadamente. Mas pelo menos o ônibus anda um pouco. Agora ela está feliz. E nem é só porque vai chegar finalmente em casa. Ela acaba de se dar conta de que conseguiu algo mais importante do que isso.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Quando é possível deletar



Ela escreveu. Olhou para os lados, parou, pensou e deletou. Letra por letra foi sendo jogada fora. Nem mesmo as vírgulas, exclamações e, principalmente, tantas interrogações foram poupadas. Pensou mais um pouco e, dessa vez, tentou libertar os dedos de certos radicalismos e voltou a digitar as frases, agora em versão melhorada. Novamente faltou coragem para pegar o mouse e levar a setinha até a opção “publicar”. O que poderia haver de errado com aquelas frases? Gramaticalmente estavam impecáveis. Ainda mais depois de serem construídas e reconstruídas com o olhar cada vez mais atento. A menina entendeu que o problema era o que ela pensava, queria e precisava dizer. Ela que sempre se preocupou em construir aquela imagem de garota tranqüila, quietinha e bem comportada acabou virando vitima de um trabalho de anos, juntando tijolo por tijolo. 

Lá estava ela em frente ao computador, com o perfil do Facebook aberto. E tudo pra que? Algo estava dentro da cabeça dela dançando macarena, pulando corda, fazendo cosquinhas, mas a menina não poderia colocar para fora ali daquela forma. Era confuso querer tornar o bendito texto público e ao mesmo tempo preferir que ele ficasse escondido. Tão bem guardado que ninguém nunca pudesse imaginar que aquilo tinha visitado a cabeça da menina. O que poderiam entender depois de olhar para aquelas letras? Como interpretariam a vírgula cuidadosamente deslocada para fazer companhia a certo adjetivo? Talvez ninguém daria importância ou aqueles caracteres mudariam para sempre a maneira como a garota era vista. Afinal de contas, na internet tudo vem carregado com o poder da eternidade e a magia de se espalhar quase como poeira no vento. A menina nunca saberá como poderia ter sido. O botão “publicar’ permaneceu intocado e os caracteres foram deletados. Dessa vez, para sempre. 

domingo, 14 de agosto de 2011

Tamanho GG



Seis quilos. Uma tal nutricionista entregou para a menina uma dieta. Numa época em que toda mulher está correndo atrás de dieta da sopa, da lua, da princesa e tantas outras para ficar magra, ela estava andando na contramão. Precisava ganhar seis quilos. Isso mesmo, ganhar. E é claro que no meio do caminho enfrentar a indignação das pessoas. Afinal, o que dizer de uma pessoa que está precisando ganhar algo que muitos fariam de tudo para perder? A garota nem achava que precisava ganhar peso, a saúde ia bem apesar dos problemas emocionais e a vida seguia como sempre. Queria ganhar outras coisas só que, enfim, isso não vem ao caso agora. Mas como todo mundo tem mania de se apegar a palavras de especialista, lá foi ela seguir a risca tudo que foi pedido. As sete refeições do dia eram sempre bem acompanhadas por fibras, suplementos e tudo mais que ajudasse no processo de engorda. O tempo foi passando e os quilos não vieram. Ninguém sabia por quê. Claro que a nutricionista tratou de duvidar que as orientações estavam sendo, realmente, seguidas e a dieta foi novamente ajustada.

A garota acabou desistindo e foi seguir seu caminho como antes, fazendo algo que ela sempre achou absolutamente normal: comer quando se tem fome. E eventualmente quando se tem apenas vontade. Porque não? Talvez as orientações nutricionais sirvam para quem não se sente bem com o corpo que tem. Só que, definitivamente, na vida existem coisas muito mais pesadas do que o peso. Mesmo que o zíper da calça favorita não feche mais ou a barriga atrapalhe na hora de amarrar o tênis.  É sempre tempo de se encantar por uma nova calça ou explorar o corpo e novas possibilidades para ajeitar o cadarço. Mesmo que no clube a vergonha transforme a canga em amiga inseparável ou sua cintura descubra que não é igual à de ninguém. Principalmente não é igual à daquela moça da revista que recorreu à lipo ou ao Photoshop ou aos dois. A menina pode não ter esse peso ai das gordurinhas só que, de vez em quando, ela também é como todo mundo e não escapa das outras coisas para carregar na vida. Só que pra resolver essas não existe o combo redutor de medidas: dieta + academia + cirurgia plástica + promessa + simpatia + oração para Santo Expedito. 

sábado, 6 de agosto de 2011

Aula sábado


Mais de 10h da manhã. Ela estava na sala de aula em um sábado. Mais um sábado a ser somado aos outros tantos dos últimos quatro anos e que se juntará aos que virão até o fim de 2013. A menina chegou cedo, às 8h, e teve que acordar mais cedo ainda. Colocou o celular para tocar 15 minutos antes do tempo previsto só para apertar o modo soneca e ter o prazer de se enganar achando que a vida tinha lhe dado de presente mais um tempinho de sono. E às vezes como é bom se iludir um pouco para as coisas parecerem melhores. Pena que todo mundo um dia acorda e daí, além de sentir falta da ilusão, se sente idiota pelos alimentos fornecidos a aquela sensação. Como o cansaço era grande, o modo soneca foi apertado novamente e o resultado foi mais um dia saindo sem tomar café e correndo atrás do ônibus. Tudo para não chegar atrasada, coisa que aquela menina sempre teve medo. O que poderiam dizer dela? Pensar que ela era irresponsável, coisa que a garota sempre lutou pra não ser. 

Depois da aula de inglês, mudou de sala para começar mais uma aula, agora de outra língua. No início, bateu uma preguiça que dois ou três bocejos não deixaram que ficasse escondida. Como de costume, uma musiquinha para atrair a atenção dos alunos, treinar pronuncia e aumentar o vocabulário. E como a canção era triste... Parece que quando a gente não está muito bem tudo vira indireta para mexer numa ferida antiga. E a menina para piorar a situação resolveu achar que aquilo tinha tudo a ver com ela. Experimentou a carapuça que acabou ficando certinha e ainda combinando com a roupa e os sapatos. Logo depois, a conversação caminhou para assuntos que a menina não queria tratar, ou preferia que fossem tocados na sala da psicóloga. “Como foi o seu último relacionamento?”. A pergunta direcionada para a colega, que está completando um ano de casamento, acabou sendo encaminhada também para a menina. E o questionário seguiu seus desdobramentos. O tempo foi nublando sem chover. E pelo menos dessa vez, ela segurou a chuva. Descobriu que de uma hora pra outra possuía esse poder. Quem sabe o próximo passo não seja conseguir afastar as nuvens cinzas com um sopro e levar o sol para um passeio.          

domingo, 31 de julho de 2011

Noivinha


A roupa era branca, mas não era uma roupa qualquer. Um vestido branco escolhido, provado e ajustado durante os meses de espera para o grande dia. Um dia que finalmente chegou e foi aguardado com a ajuda de uma contagem regressiva extremamente rápida e lenta ao mesmo tempo. Na véspera, é que a menina se deu conta do tanto que um ano passou depressa. Ela entrou na igreja igual a uma princesa. Bonita como sempre, usava maquiagem leve porque aquelas sardas que deixam o rosto tão jovem e suave não deveriam ser escondidas. Nos olhos, nada de sombra muito carregada. Na medida certa, sombra, rimel e delineador não poderiam se sobrepor ao olhar brilhante e ligeiramente úmido de quem caminhava para uma vida nova cheia de alegria. Passos que algumas pessoas podem até pensar que sejam um pouco precoces, afinal de contas ela tão novinha já está começando a escrever a história de uma nova família. Mas esse parece ser o tempo certo que foi reservado pra ela começar mais uma fase.

Voltando da lua de mel, ela encontra uma casa nova. Sem as três irmãs pedindo uma roupa emprestada, cantando pelos corredores ou fazendo alguma brincadeira. Quando abre a porta, sente um cheiro de bolo recém saído do forno, mas logo percebe que não é mais uma das receitas da mãe e sim o aroma da cozinha do apartamento de cima. Agora ela vai criar as próprias receitas e esperar a chegada dos filhos para viver novamente as aventuras de uma casa barulhenta. Enquanto esse tempo não chega, a garota que, embora casada, ainda preserva seu jeitinho de menina, segue descobrindo um novo mundo com leves traços do antigo. Segunda-feira ela já reencontra as amigas na faculdade.  As leituras, provas, trabalhos e estágio vão se misturando às preocupações de onde ficará aquele vasinho de flores ou qual forro colocar na mesa. Se o vasinho ficará na mesinha de centro ou na estante ainda não dá pra saber. Nem qual forro vai acompanhar o casal no primeiro jantar. A única certeza é que a noivinha será muito feliz.  

domingo, 24 de julho de 2011

Mais que um secador


De calça de moleton velha e com a barra rasgada, cabelo preso sem a menor preocupação em deter algum fio que resolveu escapulir. E com certeza muitos estavam fora do lugar. As unhas tinham vagas lembranças do que seria um esmalte. Mas mesmo assim a menina resolveu ficar bonita. Queria e precisava disso. Por um bom tempo o desejo de cuidar da aparência estava sendo freado pela misteriosa preguiça que ela desconhecia de onde vinha. Preguiça essa que não tentava dar palpite quando a garota fazia qualquer outra coisa, desde lavar o carro até passar roupas. Enfim, chegava a hora de enfrentar o desafio. Procurou no armário a roupa que achava mais legal. Não era nova, mas na verdade nem precisava ser. Bastava deixar a menina com a aparência mais alegre, de quem gastou algum tempo para escolher aquela roupa e não uma outra qualquer. O resto do trabalho ficaria a cargo do salão. Não o trabalho todo, mas boa parte dele sim. 

Enquanto fazia as unhas, tentava ficar quieta. Apenas tentava. Era impossível não olhar atentamente para a prateleira vendo vidros de esmalte que iam do rosa ao preto passando pelas cores ousadas que as moças usam hoje em dia: amarelo, verde e azul. A menina seria obrigada a decidir entre tantas opções. E foi conservadora escolhendo o vermelho que sempre usava nos tempos em que se arrumava sem grandes dificuldades. Prestou atenção também na conversa da manicure que falava mal de outra cliente (Sim, muitas delas fazem isso quando você dá as costas e sai do salão), no papo da cabeleireira que desviava da fumaça do secador falando da novela das seis. Também teve seus momentos de deixar a atenção se perder e apenas pensar no porque de estar se arrumando. E será que precisava de um motivo? Há não muito tempo atrás essa pergunta nem seria feita. O fato é que independente de pensamentos, conversas, fumaças e fofocas algo de bom acontecia quando as cutículas saiam, as unhas recebiam pinceladas e cada pedacinho do cabelo ficava liso. Crescia uma ansiedade boa de ir logo ao espelho pra ver o resultado. E nem importava se o que ela encontrasse no reflexo parecesse mais especial do que os outros iriam ver. A alegria em se cuidar estava de volta. Levantou da cadeira e seguiu para casa com passos lentos e leves, a cabeça se movendo devagar para convidar o vento a tocar os cabelos. E um sorriso bobo.           

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Mensagem de texto


Pelo terceiro dia seguinte. Ela pegou o ônibus no mesmo horário e sentou no mesmo banco. Logo ao lado, estava também a mesma pessoa: um desconhecido. Ele com a mochila no colo, celular na mão e o ombro encostado na janela. Usava o aparelho uma hora para mandar mensagens, que a propósito eram longas, e outra hora pra escutar música. Ela sabia que os recados eram grandes porque observava toda a cena. Só não conseguiu ver o que estava escrito em cada uma delas porque observava discretamente demais. Dessa forma, só restava imaginar quem as receberia. Talvez uma namorada, o melhor amigo, um colega de trabalho ou a mãe. Claro que não era a mãe, né?! Afinal de contas quem você conhece que fica mandando mensagens longas pra avisar pra mamãe que comeu direitinho, está agasalhado e quase chegando em casa? A música também não deu pra ver qual era. 

O garoto escutava de forma baixa, discreta. Sem dar batidinhas nem com o pé nem com as mãos. Pela reação, talvez não fosse nenhum Rock desses pesados e a menina torcia para também não ser pagode, funk ou axé. Ela tirou um livro da bolsa e, de imediato, aquele desconhecido olhou para ver o que a menina estava lendo. A garota ficou sem graça já que tinha nas mãos apenas mais um desses livros de auto-ajuda que o pessoal escreve para as mulheres aprenderem a se defender dos homens. Umas acreditam que tudo naquelas páginas é verdade, embora nunca coloquem em prática. Outras vêem o conteúdo como algo meio humorístico. A menina seria um meio termo entre esses dois grupos de mulheres. Depois de um tempinho cansou da leitura e resolveu continuar observando. Ele já não estava mais com a blusa de frio verde musgo. Retirou enquanto ela se distraia com o livro e a menina nem percebeu o menor movimento. A viagem chega ao fim para ele, que dá o sinal e percebe a estranha ao lado abrindo caminho enquanto o garoto abre a boca para dizer com a voz grossa e bonita um “obrigado”. Tudo ali muito discreto a ponto de não passar batido. E ainda tem gente que acha que a simplicidade não chama atenção. 

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Listando a vida


Ela está fazendo uma lista. E olha que não é fim de ano quando todo mundo escreve aquele monte de planos para os 365 dias que vem pela frente. Nem é época de aniversário pra enfileirar nomes a serem convidados numa festa. Também não está checando o que falta na dispensa para ir às compras. A lista que a menina está fazendo é meio confusa, assim como a cabeça dela nesse momento. É que foram muitos ganhos e perdas num tempo curto demais. Pra quem adora se prender aos detalhes da rotina na ilusão de se sentir mais segura, isso faz alguns estragos. Não dá pra definir de que seria essa lista. Ali misturado, numa ordem que nem é alfabética nem de importância estão coisas para comprar, doces, esportes, lugares, pessoas que precisam de ajuda, umas que ela gostaria de encontrar pela vida outras que merecem e devem ser esquecidas. Tudo bem que é meio idiota colocar no papel um nome para tirar da lembrança já que isso só ajuda a lembrar, mas a menina nem pensa nisso.

De alguma forma aquela lista surge como uma amiga, dessas com jeito de psicóloga, que escuta anseios, presta atenção nas bagunças criadas na cabeça e que dão um jeito de escapulir pela boca. E ainda tem a vantagem de tentar ajudar a organizar tudo. E a garota faz a lista daquele jeito romântico de sempre. Nada de computador! Tudo escrito a mão e com o cuidado de usar canetas coloridas. Ela adora canetas coloridas. E romântica também em acreditar que de alguma maneira aquelas palavras vão todas fugir do papel, no momento certo, e se materializar. Pelo jeito cuidadoso com que ela desenha as letras e pelas pausas que faz enquanto pensa no próximo item, daria para dizer que eles se tratam de planos para o futuro. Mas ela sabe que é mais do que isso, só não tem a dimensão do que seja exatamente para conseguir explicar. Talvez sejam sonhos, misturados com esperança, o desejo de mudar de vida e a necessidade de encontrar um caminho. Que nome se dá pra isso?

domingo, 10 de julho de 2011

Como colocar cores


Ela precisava de alguma coisa para alegrar a vida. E receitinhas para isso é o que não faltam. Aliás, toda hora aparece um amigo, colega, conhecido e até desconhecido que acredita conhecer as fórmulas certas pra aliviar uma tristeza. Mandaram a menina abandonar tudo que lembre das tais coisas que fazem mal. Essa dica é velha o bastante para todo mundo saber que sozinha não é eficaz. É difícil porque certos hábitos, objetos, pessoas e lugares são complicados de serem largados. Fica aquela coisa de você sentir que precisa jogar fora e bater o medo do arrependimento, a vontade de ter e o desejo de não querer brigam na cabeça e, mesmo que se saiba racionalmente o que é o melhor a se fazer, isso não resolve o problema. Outra coisa que sugeriram para a garota foi investir em mudanças no visual: cortar o cabelo, se arrumar mais e comprar roupas novas e alegres. Tudo também muito complicado. Será que mudar o visual, do lado de fora, teria o poder de fazer a beleza passar meio que por osmose para o lado de dentro que se sente tão feio? Uma blusa colorida ou um vestido vermelho conseguiriam pintar a alma que está temporariamente cinza?
  
Já receitaram pra ela fazer academia. Afinal de contas isso virou remédio pra tudo: perder peso, problemas na coluna, melhorar o fôlego, ocupar o tempo e conhecer gente nova. Atividade física é sempre bacana, mas haja argumento para convencer um corpo que só quer dormir, a acordar não só para puxar uns ferros, mas a acordar para a nova vida. A garota escuta os conselhos com o carinho de quem encontra apoio de todos os lados. Tenta fazer, só que de um jeito meio atrapalhado, cada uma dessas coisas com a consciência de que de imediato o negócio tá dando errado. Mas como quase nada se resolve rápido mesmo, isso fica de consolo. As receitas estão todas ai. Ninguém sabe é a dose certa de colorir a vida e como deixar o verde, amarelo e azul alcançarem os cantinhos de difícil acesso.  As lembranças ainda vêm misturadas com a alegria da saudade e a tristeza da frustração. E ela não sabe se vai ter que jogar todas fora ou dar apenas uma limpeza. Não descobriu se para despertar o corpo é tomar banho frio ou serve uma xícara de café. 

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Quando eles estão juntos


Dentro do vestiário do clube. Ela abriu a mochila e tirou de lá uma sacolinha com um par de tênis velho. Era tão velho quanto querido. Quantas e quantas vezes ela já não esteve com ele? O tempo de convívio foi produzindo um relacionamento, entre a menina e os tênis, cada vez mais forte e delicado. Ela possui os pés levemente tortos para dentro, sendo o direito um pouquinho mais inclinado que o esquerdo. O calcanhar meio áspero e a sola rosada contrastam com a pele morena e macia que cobre a parte de cima dos dedos. Cada um deles um pouco menor que o outro fazendo uma seqüência, do dedão até o mindinho, que lembra uma escadinha construída milimetricamente. As unhas, às vezes pintadas de cores que podem ser tanto um vermelho quanto um azul marinho, quase sempre estavam com um pedaço faltando ou uma discreta rachadura. Só porque a menina desde criança ama jogar futebol.

E o par de tênis sabe que foi justamente esse amor que promoveu a aproximação entre a garota e aquele calçado. No primeiro encontro, o estranhamento já era esperado. De início, sapato novo nenhum está preparado verdadeiramente para as peculiaridades de seu dono. Mas aos poucos ele foi aprendendo a se curvar para não perturbar a individualidade dos pés tortos da menina. O cadarço ia entendendo que seria amarrado da mesma maneira por inúmeras vezes e só não tomava a liberdade de fazer isso sozinho porque aquele era mais um gesto de afeto naquela relação. E as pontinhas dele que sempre ficavam prestes a tocar o chão também eram ajeitadas com cuidado nas laterais do tênis. As palmilhas ofereciam a maciez em troca do talco que mantinha cada uma delas sem o cheiro de chulé. O solado sabiamente ia se desgastando, um pouco mais que o normal, na ponta bem perto de onde se acomoda o dedão. O tênis também queria ajudar a menina a dar chutes mais precisos. Na hora de colocar as meias para se unir a ele, de calçar, de descalçar, de chutar e de lavar é que dá pra sentir como os detalhes construíram aquilo tudo. Quando a menina e o tênis velho estão um com o outro a sensação de conforto faz pensar que os dois sempre estiveram ali juntos. 

sábado, 25 de junho de 2011

É preciso um bocado de tristeza


Era um daqueles dias pós-feriado que todo mundo trata como se fosse feriado mesmo. Ruas vazias, passos lentos pelas ruas e comerciantes batendo papo nas portas das lojas por falta de clientes. A menina saiu logo depois do almoço para um passeio. Vestiu roupas leves de ginástica e ignorou o frio que estava sentindo dentro de casa e por dentro também. Logo encontraria algo para aquecê-la. Pelo menos externamente. O sol de inverno estava forte e o céu com aquele azul clarinho que ela adora. Só dava pra sentir frio com aquele ventinho que misteriosamente a gente só sente quando está à sobra. A demora para a chegada do ônibus não virou um incomodo. A menina ansiosa havia aprendido que para certas coisas o jeito é esperar. Chegando ao local, o passeio não se tornou agradável como o esperado. Ela escutou coisas que chegou a imaginar, por várias vezes, serem verdade. De certa forma já eram esperadas. Mas como aquilo tudo era ruim demais ela acabou ouvindo cada palavra com ares de novidade. Como algo “não acreditável’. E a garota ficou sem chão. Indo embora atravessando a rua em direção ao lado errado.

A tristeza tomou conta pelo caminho e pela vida. E nessas horas quem nunca aproveitou pra se lembrar de todas as vezes que sentiu aquele gosto amargo e familiar? O difícil é recordar das coisas boas que vieram depois de uma perda. E ela bem sabe que pra gente agarrar alguma coisa na vida tem que abrir a mão e inevitavelmente surge o espaço necessário pra outra coisa escapulir e ir ao chão. A menina ficou incomodada com o cara que olhava de um jeito discreto e espantado para as lágrimas que não eram contidas pela parte de baixo dos óculos escuros dela. Que tipo de situação ele estaria imaginando ter acontecido pra justificar um rosto tão triste? Talvez um ferimento, a perda de algo importante ou uma morte. Ou então todas as alternativas anteriores. Ah que idéia maravilhosa usar óculos escuros. Uma vez disseram para a menina que eles davam a sensação de invisibilidade, como acontece com algumas crianças de menos de 5 anos de idade que juram que basta fechar os olhos para não serem vistas por ninguém. A garota se sentia dessa maneira, então ignorou a presença de quem estava no coletivo e se deu ao luxo de sofrer como se estivesse sozinha trancada no quarto de luz apagada. Chegada à hora de descer do ônibus pegou seu caminho na rua e na vida. A tristeza seguiu de guarda costas por um tempo, mas logo logo ela vai embora. Isso porque nem relógio trabalha de graça. E da menina a tristeza não vai receber nem mais um prato de comida e mais um centavo. Pelo menos não por aquele motivo. Pelo menos não por agora. 

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Garçom aquí nessa mesa de bar


Uma amiga chamou pra sair. A menina de cara quis inventar uma dor de dente, falta de dinheiro ou qualquer uma das estratégias que sempre usou para não sair de casa. Algo extremamente perigoso, pois, muitas vezes implica em conhecer gente nova e estar em um ambiente que não seja nem a própria casa nem o trabalho. Seguindo orientações da terapeuta, resolveu não utilizar o poderoso artifício de criar desculpas e aceitou o convite. Em 3 horas chegaria o momento planejado para sair de casa. Logo começaram as dores de estômago. Ela sabia que tudo aquilo era psicológico então começou a se planejar para tirar o foco da dor. Escolheu o vestido, mudou de idéia umas 10 vezes antes de vestir e mais duas quando já estava com ele no corpo. O ritual com os sapatos foi mais ou menos o mesmo, só que mais rápido. Ela não é dessas mulheres sortudas que tem mais de 12 sapatos à disposição. Arrumou o cabelo, escolheu o perfume e, de repente, se deu conta de que estava se arrumando demais. É que sutilmente foi entrando na cabeça dela a possibilidade de chegar lá no barzinho e conhecer um cara especial. (Sim, apesar de tentar se proteger de tudo e de todos, a menina sempre achava que poderia existir um cara como ela sonhava.) E a dor de estômago virou frio na barriga.

Na hora de sair, foi só entrar no ônibus para começar a chover. A menina tratou de interpretar a água vinda das nuvens como um aviso vindo dos céus de que era melhor ficar em casa. Já não dava pra desistir mais, então seguiu rumo ao destino traçado. Acomodada na mesa junto às amigas, olhava distraidamente para as pessoas no bar e ao mesmo tempo desviando o olhar com medo de que ele se cruzasse com o de alguém. Poderia achar ali um cara bacana. Mas lembrando das experiências anteriores era bem provável que as esperanças a levassem em direção ao babaca que só quer tirar onda com os amigos ou ao típico homem “bonzinho”, que costuma ser um excelente ator. O tempo passa e um cara que ela nem tinha percebido se aproxima da mesa e começa a conversar. Ela pensa de imediato em como fazer com que ele vá embora. Fez isso a vida inteira então tem experiência no assunto. Mas logo desiste por um motivo que nem faz idéia de qual seja. As respostas inicialmente monossilábicas viram frases de três palavras e depois ganham sorrisos de acompanhamento. Ele é legal. Pode ser que se torne um chato mais pra frente ou se torne ainda mais encantador. Como ainda não dá pra saber, o jeito é esperar, observar e não ficar presa às lembranças do filho da P@#$%* que ela conheceu meses atrás. Dizem que quem procura acha. Ela decidiu testar essa teoria. 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Das cores das flores


Uma flor caída no chão. Meio murcha, parecendo talvez que acabou de ser arrancada da árvore por uma criança que logo se cansou da brincadeira e deixou ali perto do meio fio. Tinha um monte de pétalas, embora algumas tivessem sido já arrancadas. Se alguém brincou de “Bem me quer, mal me quer” com ela, se cansou logo de início. Ou porque passou a não acreditar nessas coisas, de repente, ou porque percebeu que tirar pétala por pétala seria uma forma meio demorada para descobrir se era amada por alguém. Tudo bem que tem gente que passa a vida inteira atrás dessa resposta (o que é muito mais tempo), mas ai é outra história. A tal flor foi apanhada do chão por uma menina que passava distraída pela rua, mas não o suficiente para deixar aquele objeto vermelho tão vivo ficar ali despercebido. A garota se lembrou de quando viu, pela primeira vez, um bouquet de flores entrar em casa. Por coincidência eram da mesma cor da que ela tinha agora nas mãos. Foi um presente que a irmã havia ganhado do namorado. Naquela época, as crianças da escola brincavam de classificar os sentimentos das pessoas de acordo com as cores das flores que davam de presente. As brancas serviam para entregar ás mães, avós ou alguma tia querida. As rosas rosas normalmente eram para amores delicados como namoros de pouco tempo ou para alguma pretendente. E vermelhas só mesmo em caso de paixão misturada com amor. 

A menina ficou pensando se aquela flor teria sido dada de presente a alguém e jogada fora depois da descoberta de uma traição. Ou largada após um pedido de desculpas não aceito. Será que ela fazia parte de um conjunto com outras flores, envolvidas por um papel bonito e um laço de fita bem grande? Ou seria dessas solitárias que saíram de alguma floricultura daquele jeito e, assim como algumas pessoas na vida, parecem ter nascido com o destino de não ter acompanhamento? Resolveu guardar a flor dentro de um bloquinho de anotações guardado dentro da bolsa. Não queria dar ao objeto o caminho da lixeira mais próxima. Cada pétala ficaria guardada quase que para sempre. O perfume mudaria e não haveria mais o tom fresco de uma flor recém colhida. Mas a essência estaria ali armazenada. Mesmo a garota não tendo o menor conhecimento da real história da flor morta que permanecia viva de alguma forma.  

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Sem energia


Ela precisou fazer hora extra no trabalho, mas o que irritou não foi sair mais tarde. O negócio era o motivo: falta de energia elétrica. Sem computador e sem telefone por 3 horas, as tarefas se acumularam e infelizmente não dava pra deixar pro dia seguinte. Na saída, a chuva que tinha dado uma aliviada ficou mais forte e levou embora a chapinha feita no dia anterior. O guarda-chuva foi moldado pelo vento e primeiro ganhou forma de taça para depois se tornar apenas um guarda chuva quebrado. Os papéis, que a menina levava pra casa com a intenção de continuar o velho ritual de adiantar as tarefas no ambiente familiar, de tão molhados começaram a se desmanchar. Finalmente o ônibus chegou e a chuva parou. No trajeto, ou o trânsito ficava completamente parado ou o veículo acelerava em meio a ruas quase completamente escuras. Quando aparecia uma luzinha ela só servia pra revelar postes caídos, árvores em cima de carros e objetos carregados pelo vento. Chegou a hora de descer do ônibus. Luz a menina só viu do farol dos carros. Com tudo escuro, os três quarteirões percorridos todos os dias até o seu lar nunca se tornaram tão grandes. 

O chaveiro nas mãos com a chave já preparada para se unir à fechadura, os passos apressados e o tremor provocado pelo frio misturado com medo acompanharam a moça no caminho. Em casa, pensou em ligar o computador, assistir um pouco de TV, ouvir uma musiquinha e antes de tudo isso tomar um belo banho bem quente. Acabou frustrada indo procurar uma vela. De repente, a menina escuta um barulhinho chato e se dá conta de que a bateria do celular tinha acabado. Em um gesto automático, colocou o carregador na tomada e logo depois começou a rir de si mesma. Pelo menos o bom humor não tinha ido embora junto com a energia. O jeito era tentar usar o telefone fixo para xingar as atendentes da CEMIG. Como ele também não estava funcionando o negócio foi passar a noite sem brigar com ninguém. Fez a refeição à luz de velas em um clima nada romântico já que nem dava pra ver direito o que tinha no prato nem tinha uma boa companhia por perto. Solucionado o problema da fome era hora de descobrir se precisaria usar novamente o fogão. No impasse entre tomar um banho gelado de chuveiro no escuro ou utilizar um balde com água quente para se banhar no escuro, ela preferiu a segunda opção. Aqueceu a água, tomou banho, sentiu frio, foi dormir. O livro de cabeceira ficou intocado coitado.            

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Donde vive la belleza


Por la mañana, la chica se despierta, pasa por el espejo y, como de costumbre, no hay como decir que no es fea. Por lo menos, es eso que pensó por toda la vida. Y, al mismo tiempo lo que mucha gente quiso que ella pensase. Sacó de la maleta una ropa nueva para intentar tener una apariencia mejor. En el viaje su principal preocupación no era ser la mujer más guapa del mundo, pero conocer la ciudad y sacar fotos buenas. Sin embargo, creo que a ella le gustaría ser admirada por las personas y tener algo de bello en sí misma para atraer la atención y dejar de ser sólo una pared. En cuanto se vestía, era imposible se olvidar de su adolescencia cuando las muchachas mas lindas que ella caminaban por la escuela haciendo todos miraren con encantamiento. Sería un sueño estar entre ellas, ser una de ellas al menos por un día. Pena que la chica no se daba cuenta de que era muy guapa, no apenas en la apariencia. Después del desayuno, salió por las calles para conocer aquel sitio tan hermoso.

Sin lluvia o un sol muy fuerte, sentía el viento y la iluminación típica de los días de invierno. No hay mejor situación para hacer su trabajo. Los colores se quedan más vivos y vibrantes. Caminó sin grandes planos y fue llevada por el destino a un parque muy grande. Después de unos instantes se quedó sentada en la grama cerca de muchos árboles y entonces admiró todo lo que se podía ver en su alrededor. Muchos niños descalzos indo de un lado a otro con hojas y flores en las manos para hacer sus travesuras. Las madres charlaban sobre los problemas da vida, sus amores, la vida de los demás y otras cosas. Un hombre de unos treinta años pasaba todo el tiempo haciendo la misma actividad: lanzaba una pelota al aire y prontamente la sacaba del suelo y empezaba todo de nuevo. La chica intentó pensar porque aquel hombre hacía una cosa tan sencilla y repetidamente, pero su instinto solo le ordenaba que sacase fotos. A ella le gustaría sólo registrar cuan hermoso era toda la simplicidad de la vida en el parque. Era una muchacha que sabia reconocer las cosas bellas. Bastaba comprender la belleza que se encontraba en ella. Más un trabajo para el tiempo.  

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O telefone tocou novamente...


Lá estava ela trabalhando cansada, cheia de preocupações e com uma cólica daquelas de matar. E pra animar ainda mais a festa, tinha fome e estava deprimida como em toda TPM. Em meio ao falatório dos colegas, gente passando de um lado para o outro e problemas chegando de mãos dadas e aos montes o telefone toca. Ela vai, na medida do possível, correndo para atender. Esperava ansiosamente por uma ligação que não resolveria as dores físicas, mas acalmaria o ambiente no trabalho e mataria, por envenenamento, pelo menos uma preocupação.  Melhor do que nada, né?! Entre o alô e a devolução do telefone para o gancho foram poucos segundos. Irremediavelmente tinha dado errado. Tanto esforço, tantas horas de dedicação, inclusive no almoço e fazendo hora extra, se perderam por causa de uma ligação tão rápida. Tentou buscar uma última alternativa com a única pessoa que talvez pudesse ajudar. E a resposta foi um singelo movimento de ombros acompanhado da frase: “Deixa pra lá.” A menina escutou isso apenas uma vez, mas aquelas palavras ficaram se repetindo de forma incansável na cabeça dela. Pensou em palavrões, se imaginou quebrando computadores, lançando folhas e mais folhas de papel pelo ar e gritando para deixar todo mundo chocado. Afinal, aquelas seriam reações incompatíveis para aquela menininha sempre tranqüila. Resistiu a esses desejos imediatos e apenas respondeu: “Tem razão, deixa pra lá.”. 

Pegou a bolsa, o casaco e saiu de lá sem dizer uma palavra nem se importar com o fato de ainda faltar um bocado pra terminar o expediente. Não sabia aonde ir e nem se importou com isso. Foi andando e pegou um ônibus no qual nunca havia entrado e deu sinal para descer quando sentiu vontade. Acabou chegando dentro de um shopping e sentando para comer uma grande fatia de torta que, é óbvio, tinha de ser de chocolate. O poder terapêutico daquela iguaria foi espantando a tristeza e um pouco da dor. Para recuperar completamente o bem estar, a bota vista em uma vitrine fez a sua parte. Sem se importar com o preço, a menina comprou aquele lindo objeto utilizando o bom e velho argumento: ‘Hoje eu mereço um presente!”. Com a sacola nas mãos e um sorriso enorme no rosto saiu caminhando e decidiu voltar pra casa. Teria que voltar ao trabalho no dia seguinte e encarar os problemas velhos e novos. Mas o fato nem passou pela cabeça dela. Estava feliz demais para deixar qualquer preocupação aparecer.