segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Para sentir um arrepio



Estava frio, mas ela só conseguiu sentir calor. Alguns podem pensar que era porque havia caminhado muito e subido grande quantidade de ladeiras. Mas não era só isso. Não era simples assim. Um pouco de atividade física não disfarçaria as sensações provocadas pelos 15°C e 2.400 metros de altitude. O que talvez fazia a menina se sentir aquecida era uma espécie de estado de choque, não provocado por um trauma, mas gerado por uma alegria esquisita. Ao terminar o percurso, ela se sentia leve não pelo gasto de calorias. Deixou coisas para trás que carregava sem saber, sem se lembrar. Algo infinitamente mais pesado que as gordurinhas do churrasco de fim de semana e bem mais compactas também. 

Lá em cima, a menina via uma grande cidade antiga. Nunca invadida por nenhum conquistador, por mais esperto que fosse.  Onde não se viu derramamento de sangue mesmo quando abandonada pelos seus habitantes. Construída com o cuidado dedicado ao que pretendia ser um pedacinho do céu bem longe das nuvens, talvez não tão distante assim. Lugar preservado com um orgulho perfeitamente justificado por tamanha beleza. Talvez, por isso, a garota sentiu um arrepio na pele que não era sinal de frio. Parecia uma onda de calor que envolvia a alma e depois apertava de maneira forte e acolhedora. Um tipo de alegria com status de felicidade.  Pena que pra quem sobe sempre resta no destino a volta pra baixo. 

sábado, 29 de setembro de 2012

Roubando o lugar do não



Ela acabou descobrindo com o tempo que as coisas na vida, por mais complicadas que sejam, acabam convergindo para uma pergunta com apenas duas possibilidades de resposta: sim e não. E para passar pelo mundo fugindo dos olhares de reprovação, elegeu o “sim” quase que como resposta única. Rejeitar um presente, um pedido de ajuda ou uma ordem seria o caminho mais curto para que a garota tão estranha  vivesse ainda mais sozinha. A menina foi desde pequena se orientando para não desagradar quem quer que seja. Talvez essa seria a chave para a completa aceitação. Talvez fazer os trabalhos da escola para aquele colega mais preguiçoso, ficar acordada até tarde para revisar os textos de um vizinho ou emprestar o CD favorito, mesmo sabendo que ele dificilmente voltaria, fossem boas estratégias. Afinal, quem seria capaz de não tratar bem uma pessoa sempre prestativa? 

Foi assim que aprendeu a sufocar o “não” mesmo quando ele estava por lá para garantir que a menina seria respeitada. Como essa lógica não tinha nada a ver com a lógica da vida, por sinal sem lógica nenhuma, só poderia dar errado. Estava correta mesmo era a lei da física de que toda ação produz uma reação de mesma força com sentido contrário. Enquanto o “sim” roubava o espaço que deveria ser do “não”, e o contrário também acontecia, o respeito pela vontade dos outros provocava o desrespeito, em igual medida, ao que fazia bem à garota. Tudo por escolher o destino  diferente do que se quer fazer. Agora ela deve ter entendido, mas infelizmente a distância entre saber e agir continua sendo longa.    

domingo, 19 de agosto de 2012

Vê se pode?!


Assistia filmes de terror a noite e com a luz apagada. A menina fazia isso quando tinha 8 anos e achava tudo o máximo. Aquele clima de suspense, a sensação de demostrar aos outros como era uma criança corajosa, principalmente para o irmão mais velho, tornava tudo ainda melhor. Claro que na hora de dormir a história era outra. Ela via em qualquer sombra de um móvel a presença discreta do Freddy Krueger. Uma pasta mal colocada em cima do guarda-roupa era igualzinho ao famoso chapéu do vilão. E as gradações de luminosidade permitiam fantasiar que ali estava a conhecida camisa dele, listrada com as cores do Flamengo. E como o universo desses filmes tem personagens para todos os gostos, também sobrava espaço para os brinquedos assassinos, bonecos deformados, e mocinhas que davam sentenças de morte via telefone. 

Mas naquela época, o medo aparecia com uma pitada de diversão, suavizado pela ideia de que o sono logo vinha e a claridade da próxima manhã também. As cenas eram assustadoras, mas nada que gerasse nojo ou algum incomodo maior. Estranho mesmo é que o mal estar diante do horror das telas só apareceu quando a infância foi embora. A menina começou a não se sentir muito a vontade com massacres de motosserras, golpes de machados na cabeça e gritos de pessoas aprisionadas. Pode ser porque quando se é pequena a realidade e a fantasia podem se vestir de verdade ou mentira com a conveniência dos pais e dos filhos. Tudo para manter as barbaridades da vida mais distantes. E ainda tem criança querendo crescer logo... Vê se pode?!    

domingo, 5 de agosto de 2012

Em segundo plano na vida



A menina saiu de casa para cuidar da própria vida. Não, ela não estava se mudando para viver como adulta longe da família. Fazia isso perto dos pais mesmo e não via nenhum problema nisso. O que ela tinha decidido era resolver pequenas pendências que sempre ficavam para trás porque a garota pensava: “Isso aqui não vai atrapalhar a vida de ninguém, então deixa para depois ou para nunca mais”. Mas ela estava enganada ao não tratar certas coisas tão pequenas como prioridades. Afinal, adiar uma visita ao médico, não renovar um documento já com a validade vencida ou deixar as roupas sujas se acumulando no cesto mostravam o descaso que mantinha com alguém tão importante: ela mesma.

A ânsia em deixar os outros sempre satisfeitos, fazer favores e oferecer ajuda para ser aceita, só trazia uma angustia que não passava. Era impossível garantir que todos estariam bem, o que inevitavelmente aparecia para ela como sinônimo de fracasso. Além disso, revelava como a menina se colocava em segundo plano na vida. Talvez por isso aquela saída para tirar o passaporte, fazer exames e ir ao banco carregava um significado especial que a bendita burocracia e a imensa fila não conseguiam apagar. A cada pendência resolvida ela se sentia como reservando um momento exclusivo para si mesma. E isso acabou gerando um efeito cascata. Apareceram mais e mais coisas para resolver e quando não surgiam ela inventava. Era bom demais cuidar de alguém que merecia tanto.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Um envelope para ser feliz



A menina tinha acabado de completar 18 anos, mas ao olhar para o passado a sensação era de estar com uns 70 e não ter aproveitado nada da vida. Claro que isso é fruto de um dos resquícios da adolescência: o mesmo jeito dramático de encarar uma espinha, a perda de um namorado ou doença na família. Sem se dar conta disso, foi inevitável mergulhar em comparações com a melhor amiga, a irmã, a mãe, a pior inimiga e até o cachorrinho de estimação. Já carregava desde sempre a sensação de inferioridade por nunca ter feito uma bela viagem, nunca ter namorado, nunca ter ido a uma festa de casamento nem ao teatro. Eram muitos nuncas na cabeça. E naquela altura da vida, não tão alta quanto parecia para ela, precisava fazer alguma coisa para poder se sentir como se fosse alguém como os outros.

Abriu a gaveta da mesinha do computador e encontrou um envelope pardo e uma folha de papel ofício. Decidiu que a partir daquele momento ia sair em busca do novo e registrar cada nova conquista, cada passo até se tornar uma pessoa normal. Foi anotando no papel o primeiro Milk shake, a abertura de uma conta em banco, a compra de um depilador elétrico. Guardou o papel no envelope e para cada anotação tratava de colocar junto uma prova. Valia o ingresso do cinema, uma nota fiscal da comida tailandesa, a pazinha de um sorvete diferente. Era uma forma de arquivar dados objetivos que comprovassem que a menina não estava simplesmente deixando a vida passar. Algum lugar para visitar quando achasse que nunca tinha sido feliz. Passou a correr atrás de tudo o que via pela frente simplesmente para sentir o alívio de encher o envelope. E de tanto fazer isso passou a não ter mais tempo para conferir as anotações. Esqueceu de verificar com regularidade se estava sendo feliz. 

domingo, 22 de abril de 2012

A unha quebrou



Ela caiu da escada. Não foi nenhum daqueles tombos que viraram moda nas novelas em que a mocinha vai elegantemente rolando até descer por completo. Mesmo porque a garota caiu apenas do quinto degrau e estava subindo. Nos poucos segundos em que tentou se machucar o mínimo possível, foi ralando o cotovelo, batendo o joelho e cortando a parte de baixo do dedão direito. A unha do pé esquerdo que já estava parcialmente trincada, fruto de um chute acidental no canto do sofá, se partiu de vez. A menina estava protegendo aquela unha com um band-aid há dias, mesmo sabendo que uma hora ela iria se soltar e que isso seria necessário. Provavelmente tudo por medo de como seria ficar sem ela de uma vez e aguentar as consequências de deixar aquele pedacinho da pele desprotegida. Sem poder fazer nada, tratou logo de levantar do chão e perceber que a roupa não era mais branca, e sim marrom com tonalidades de vermelho. 

Ficou aliviada porque ninguém viu o que aconteceu, apenas escutaram o grito e quando as pessoas de casa foram olhar a menina já estava de pé. Pena que deixar algo escondido não faz com que não tenha acontecido. Se levantar imediatamente para escapar da vergonha não impede as cicatrizes nem deixa a roupa menos suja. A unha se soltou sem a menor possibilidade de retornar ao que era, fazendo do tombo na escada o complemento de uma pancada anterior. E já que tudo é uma sequencia, agora vem o momento da espera, a unha cresce, o sangue coagula e a roupa, só jogar na máquina que ela resolve. E como seria elegante se todas as coisas se comportassem como as camisas, calças e vestidos. Era só a lavadora se encarregar de tudo.   

domingo, 15 de abril de 2012

Alegria dos outros



Ela sentou no ônibus e inevitavelmente se aproveitou para ler as notícias do jornal do senhor que estava ao lado. Ele virou a página, começou a ler algumas piadas sobre sogras, portugueses e nordestinos e não parou de gargalhar. Ria com a naturalidade de quem acha algo realmente engraçado e seguiu dessa maneira até o momento de descer. Já a garota estava triste e não teve como não sentir inveja daquela alegria momentânea e tão pura. Ela até se permitiu exibir suas tristezas em forma de lágrimas que logo se encarregaram de ficar escuras. Culpa de quem acha que comprar lápis de olho a prova d’água é bobagem. E quando lembrou que havia se maquiado foi logo secar as lágrimas, mas a magoa de dentro tratou de enfeiar a beleza produzida do lado de fora.

Estava mal pelo cansaço de noites mal dormidas, muito trabalho, textos para ler e pelas más notícias que sempre veem embaladas como se fossem bons presentes. Pensou em como as coisas boas se tornam ruins e o contrário também. (No segundo caso, muito de vez em quando, mas fazer o que?) Mas o gosto salgado das lágrimas ajudaram a lembrar o mar e as últimas férias. Tentou pensar em coisas boas para ver se passava, mas não foi muito eficiente. Resolveu escutar música para ignorar o engarrafamento e afastar a melancolia. Às vezes isso funciona. Não deu certo, mas valeu a tentativa. O dia seria assim mesmo, mas com o tempo tudo resolve. Naquela hora, surgiu um problema mais urgente. Se deu conta da maquiagem borrada. Como se livrar da cara de urso panda no meio da rua? 

domingo, 1 de abril de 2012

Recheio de surpresa



Ela saiu de casa para comprar chocolate e voltou com uma sacola com dois pares de sapato. Há uma semana da páscoa, a menina estava determinada a preparar algo de especial para si mesma. Não dependeria de nenhuma outra pessoa para ganhar presentes naquela data. Escolheria o ovo que quisesse independente do tamanho e do preço. E se surgisse alguma dúvida, mesmo que pequena, entre um recheado com morangos e outro com surpresinha dentro, (Sim, ela cresceu, mas continua achando o máximo essas coisas de criança.) acabaria levando os dois. O salário chegou e a garota também conseguiu tempo para as compras, mas o entusiasmo foi se dissipando já no caminho para o shopping. Não entendia onde estava aquela euforia dos tempos de infância que faz a semana que antecede o domingo tão esperado durar como se fosse um mês. Entrou em duas lojas e percebeu que o desejo pelos doces não era maior que uma pequena trufa.

Passeou pelos corredores, resolveu almoçar e depois ver o que tinha de bom no cinema. Se deu conta de que o filme mais legal das últimas semanas já não estava em cartaz. Coisas que acontecem quando a gente arruma tempo para trabalhar, estudar, dormir, mas se esquece de pequenas vontades como ver uma peça de teatro ou dar uma volta no parque. Voltando à história dos ovos, foi se distraindo com outras coisas e acabou batendo uma preguiça, vontade de deixar para depois. E o assunto caiu no esquecimento quando viu dois sapatos numa vitrine. Gostou tanto que comprou sem pensar demais, coisa não muito comum para essa menina. Depois, seguiu para casa feliz, pensando em passar o dia deitada lendo um livro, acompanhada de uma música. Antes, visitou uma padaria e levou apenas um bombom. Foi sentindo como as coisas mudam, as vontades passam e outras vão crescendo. Meio sem planejamento, envolvidas pelo acaso, com cobertura de surpresa e recheio de novidade. 

domingo, 25 de março de 2012

Chega o natal...



“O melhor da festa é esperar por ela.” A menina sempre escutou essa frase embora nunca tivesse motivos para concordar. Via as amigas planejando penteados, comprando vestidos novos, falando dos garotos que estariam lá. Para ela, saber de uma festa era um motivo de tensão. Uma mistura de vontade de que passasse logo, ansiedade por todo o trabalho que teria para chegar lá mais ou menos bonitinha e o medo de tudo de errado que poderia acontecer antes, durante e depois. E o histórico não ajudava a ter uma visão mais otimista da comemoração. Depois de usar toda a criatividade para fazer com que roupas já bem conhecidas se combinassem parecendo novas, a sandália escolhida estragava no meio do caminho. No salão de beleza, a luz até chegou a acabar enquanto o cabelo tinha sido escovado pela metade. E quando a energia voltou, tudo parecia ficar bem até a chuva exercer o poder de transformar o cabelo em um pseudo Black Power mesmo sem encostar nele com uma só gota. 

As espinhas e o frio no estômago apareciam estrategicamente na véspera como é costume com todas as meninas que já tem algum problema de autoestima.  E no grande dia, valia sentar em uma cadeira molhada, se constranger graças à beleza das meninas chatas da escola, se sentir ridícula dançando ou ridícula por não dançar. Enfim, as festas pareciam não cumprir a risca o significado dessa palavra. Mas deixaram algo de engraçado. A confirmação de que as coisas não podem ser sempre do jeito que a gente quer, de que dá pra rir de pelo menos 80% das coisas ‘ruins’ que já aconteceram com a gente. Basta só o tempo dar de presente a maturidade necessária para jogar de lado a sandália estragada e dançar descalça. Molhar o cabelo bagunçado e prender acreditando que está ótimo. Encarar espinhas como sinal de juventude e a beleza dos outros como tão bela quanto a sua. E amenina só tem algo a dizer sobre isso: “Chega o natal, mas não chega essa tal maturidade”.    

domingo, 11 de março de 2012

Roupa preta



Nas mãos, luvas de renda preta que deixavam parte dos dedos a mostra. O suficiente para permitir que fossem vistas unhas cumpridas e cuidadosamente pintadas com um brilhante esmalte preto. Naquele sábado em que o sol mantinha, às 17h, o mesmo vigor do meio dia, a garota aparentava como que imune ao tempo.  A blusa negra, de tecido grosso, envolvia os braços por completo. E na menina tudo parecia querer ficar escondido. Nos olhos, delineador, rímel e sombra trabalharam juntos para que a escuridão tomasse conta das pálpebras, cílios e contornos. Talvez uma tentativa de fazer com que a maquiagem chamasse atenção suficiente para tirar o foco de um olhar sem cor. Outras peças de roupa, igualmente escuras, como saia e meia calça tratavam de ocultar as pernas. E na tentativa de se refugiar das pessoas, das cores, da vida ela se tornou uma figura impossível de passar despercebida. Ironicamente escolheu o jeito errado de tentar se ofuscar. Ou será que o desejo dela era, na verdade, atrair a atenção?

Independente da intenção, o fato é que entre a falta de cores os únicos sinais de contraste eram a caveira pintada nas costas e o rosto pálido da menina que denunciava a ausência de interação entre pele e sol. Quem está perto dela tenta entender o porquê do repúdio às cores, já que longe dos excessos e ligadas umas às outras numa combinação planejada pelo destino, só deixam tudo mais leve. Pode ser que a garota ainda não esteja preparada para isso, se viveu por muito tempo na escuridão. Afinal, nessa vida tudo que é novo é estranho e demora pra fazer sentido. Em algum momento ela vai acabar esbarrando num verde, tropeçando no amarelo, sendo envolvida pelo azul ou acariciada com um pouco de lilás. Nesse mundo doido, apesar de tudo ainda existe luz. O suficiente para as cores se revelarem. Depois desse encontro, a menina no fundo sabe o que virá.  

domingo, 4 de março de 2012

Tá olhando o que?



Uma casinha antiga no centro da cidade. Lá dentro, pessoas que a garota nunca havia visto. Depois de tirar os sapatos, lá estava ela caminhando com uma leveza imposta de quem se sentia na obrigação de não fazer barulho. Mesmo sem motivo. As conversas também se mostravam contidas enquanto os pés deixavam cada degrau para trás rumo ao segundo andar. Logo já se encontrava em uma nova sala onde os iniciantes no centro de meditação se encaminham. A curiosidade, como de costume, era tanta que fazia cócegas na capacidade de concentração. Por isso que a menina não conseguia parar de observar a textura macia do tapete tão bem bordado que dava vontade de ter um igual em casa. As portas que se fechavam sem interromper o silêncio tentavam disfarçar a idade e desgaste das dobradiças. Os exercícios de relaxamento começaram após uma explicação teórica que, embora tenha sido breve, a ansiedade fez parecer uma palestra de três horas.

E ao começar as atividades, o que deveria ser o foco de concentração não conseguiu atingir sua meta. Bem na frente da sala uma mulher emoldurada com detalhes em amarelo olhava diretamente para o fundo dos olhos de quem dirigisse o olhar a ela. Ao redor daquela imagem grande, tecidos vermelhos e rendas cor de ouro. Entre as flores entregues de presente a aquela fotografia um pequeno foco de fogo que iluminava toda a sala e não demonstrava intenção de se apagar. A ideia era olhar para a mulher enquanto a cabeça ia jogando os pensamentos no lixo. E quem disse que a menina conseguiu focar a atenção naquela senhora? Seria inevitável não ficar imaginando como teria sido a vida daquela pessoa. E era estranho o olhar fixo que parecia tentar adivinhar o que estava na cabeça de cada um. Enfim, a garota não encontrou sentido no que era tão significativo para as pessoas daquele lugar. Mas parece que observando o caminho dos outros a menina consegue ir identificando qual é o dela. Mesmo que eles sejam diferentes.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Não apenas pelo livro



Correu desesperadamente e não conseguiu chegar a tempo. E como é frustrante o esforço sem o resultado esperado. Dá uma sensação estranha de raiva misturada com o cansaço e a impressão de não poder resolver as coisas. Pode parecer um draminha bobo, mas foi exatamente assim que a menina se sentiu. Ela precisava atravessar a cidade em 30 minutos para comprar um livro com urgência e acreditou que seria capaz. A meta ousada dependia de muitas coisas. Da força física para correr depois de um dia cansativo de trabalho, da pontualidade do ônibus, que sempre atrasa, e que o trânsito de fim de tarde de uma sexta-feira resolvesse promover uma grande mudança no visual engarrafado de costume. A garota fez a parte dela mesmo quando o fôlego já ia avisando que iria embora. A garganta seca começou a reclamar e a voz, para não ser obrigada a escutar reclamação, sumiu. Ônibus e trânsito não fizeram a parte deles e a menina chegou quando a porta da livraria já estava descendo até fechar completamente para dar descanso a quem trabalha lá dentro. 
    
Ela foi voltando para casa lentamente já que não havia solução. Até procurou em outros lugares, mas o livro só existia na tal livraria de portas fechadas. Ah se a Araújo cumprisse mesmo aquele velho slogan... Mas a solução não estava nem numa farmácia nem em uma livraria 24h. E o problema muito menos estava dentro da menina. De certa forma, até que estava, mas não da maneira que ela imaginava. Acabou correndo e correndo, no dia seguinte, e conseguiu finalmente comprar o livro. Prova de que até as coisas mais triviais tem o seu tempo certo. Não adianta. Por mais que quisesse, nunca teve nem nunca terá o poder de controlar o trânsito, o ônibus, o tempo, o clima. Mal dá conta de controlar o que está dentro dela. Também precisa entender que tem hora que a única opção é esperar. E ter a classe de aguardar como se deve: com tranqüilidade, a cabeça voltada não para o solo, mas para a linha do horizonte e a alegria de se divertir enquanto isso.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O som do silêncio



Quando era criança torcia para não ser a última a dormir. Só a possibilidade de ficar no escuro acordada e sem ninguém para conversar deixava a menina assustada. Sem falar naquele silêncio esquisito que era invadido pelo barulhento ponteiro do relógio. Aquele pedaço fino de metal que se mantinha discreto durante o dia e escandaloso na madrugada. A imaginação resolvia ficar descontrolada com as luzes apagadas, daí era inevitável confundir um grande amontoado de roupas com um gorila. E é fácil entender o tipo de estrago que isso fazia em uma criança que morria de medo do King Kong. A coitada se encolhia debaixo do cobertor com a cabeça coberta. Acreditava que assim ficaria invisível para o macaco gigante e rezava para não precisar ir ao banheiro ou buscar um pouco de água.

Passados alguns anos, a menina inevitavelmente virou a última pessoa da casa a pegar no sono. Também é a última a chegar em casa e a jantar. E isso nem faz tanta diferença. O grande gorila das telas de cinema já não visita mais os pensamentos e, embora o quarto ainda abrigue uma pilha de roupas, é impossível não enxergá-la apenas como uma pilha de roupas. A imaginação já não fantasia a existência de um inimigo mirabolante, está bem ocupada revirando problemas, obrigações, medos e inseguranças da vida real. E no mesmo ritmo o estômago vai se agitando numa demonstração que infelizmente não é de fome. Se fosse assim seria simples já que a garota não se sente mais apavorada ao caminhar até a cozinha na madrugada. Para ela, durante a noite tudo parece mudado, menos o barulho do relógio no silêncio. Até sente saudades do tempo em que o King Kong era a única preocupação.      

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Hoje tem palhaçada!



Depois de crescida, ela resolveu ir ao circo. Um passeio desses que toda criança fez ao menos uma vez na vida. Toda criança, menos aquela garota. Os anos se passaram e ela ficou acostumada a ouvir falar que no circo tinha elefante, leão, gente cuspindo fogo e engolindo espada. Viu pela televisão como eram os palhaços e, para ser bem honesta, nunca entendeu porque as pessoas riam deles. Sapatos enormes, cabelos bagunçados, roupas coloridas, cara pintada e nariz vermelho. O que que isso tem de engraçado? A garotinha virou uma jovem e a duvida persistiu. Passou a ter pena daqueles que precisavam se vestir de palhaço para ganhar a vida enquanto as pessoas retribuíam com risadas constrangidas, afinal, era preciso achar graça. Sentia desprezo dos tantos palhaços que recebiam esse título sem precisarem de fantasia, apenas cruzando a vida das pessoas sentindo o prazer de fazer pequenos estragos enquanto os outros sofriam porque era o que se poderia fazer.  

Talvez o único encanto circense capaz de despertar a atenção da menina fosse a leveza dos artistas com poderes de mover o corpo para onde quisessem e sem o menor problema. Se para alguns pode parecer nojento colocar o calcanhar na nuca, para ela isso é mais mágico do que tirar coelho de cartola. É a possibilidade de ter controle sobre si mesmo no sentido mais amplo. E como seria belo caber dentro de uma mala quando a maior vontade na vida é se refugiar dos problemas e se sentir protegida. Quase tão bom quanto isso seria disfarçar uma queda ou um tropeço dando cambalhotas sem morrer de dor na coluna depois. A menina gostaria de fazer tudo isso e até tenta, mas antes é preciso ganhar elasticidade. Coisa que ela só vai conquistar quando aprender a ser flexível consigo mesma. As duas coisas andam lado a lado. Vai ver é por isso que tem tão pouca gente capaz de colocar o calcanhar na nuca quantas vezes for preciso e sem cara de sofrimento. Tem coisa que é difícil demais...     

domingo, 29 de janeiro de 2012

Como carregar um presente



Uma mulher estava na rua com uma daquelas roupas de escritório. Terninho escuro, sapato de salto alto, solado vermelho e bico fino, lenço em cores discretas no pescoço. Nas mãos, um bouquet de rosas vermelhas enorme. No rosto, uma expressão que não dizia nada. Era normal. Nada de alegria, nem de tristeza, não tinha o peso do cansaço ou a leveza de estar de férias. A menina logo viu a cena e pensou: “Que isso minha filha! Você está com um bouquet nas mãos! Isso não é cara de quem carrega um bouquet!” A garota esperava que a mulher estivesse andando na rua com passos leves, um sorriso discreto daqueles que parecem ter vontade de crescer e ficar enormes de tanta felicidade. Cabelos ao vento e segurando as flores com delicadeza e ao mesmo tempo força como se não quisesse que elas escapassem. A menina ficou imaginando que provavelmente aquele seria o presente de um cara super bonito e apaixonado como dos filmes e novelas. E que possivelmente teve a ideia do presente inspirado numa comédia romântica que foi ‘obrigado’ a assistir enquanto ele e a mulher estavam abraçados no cinema. 

Enfim, ela pensou em todo um contexto romântico para justificar a existência das rosas. Talvez porque era aquele cenário que a menina queria para ela mesma, mas claro que com algumas mudanças. Não estaria de salto alto porque é uma dessas pessoas que nasceu sem a classe daquelas que usam esse tipo de calçado como se estivessem descalças desfilando na areia da praia. Também não estaria vestida em uma roupa social, já que ela morre de calor quando precisa usar e fica muito esquisita. Parecendo que a roupa se move sozinha pendurada num cabide. Talvez fosse andando em uma praça com sandálias bem baixas e um vestido fresquinho desses pra usar no verão. E ela ia manter um sorriso bem grande a ponto de as pessoas olharem pensando que a menina é doida, afinal, a vida não é assim tão boa pra merecer um sorriso daqueles. E a garota não ia abrir mão de receber o presente de um cara bacana e super apaixonado, desses que não existem na vida real. Ela não ia abrir mão mesmo!       

domingo, 22 de janeiro de 2012

Quando ele vai embora



Ela descobriu a grande vantagem do horário de verão. Aliás, a única. Que supera a dificuldade em acordar cedo e a sensação de que o dia passa rápido demais. É a possibilidade de sair do trabalho e ver um restinho de sol no final do dia. Se bem que nem é o restinho do sol, é o melhor do sol, o pôr do sol. A garota passou a vida inteira fascinada com esse momento, quando os raios vão ficando mais leves, de outras tonalidades e se escondendo entre nuvens, árvores e montanhas. Em cada viagem ou num simples passeio ela não se continha até guardar aquele momento só para ela, tirando uma foto. Tudo porque ele tem aquela beleza meio melancólica de mais um dia que se foi. Das coisas boas que ao anoitecer já se tornam passado e daquelas que não aconteceram e ficarão na lista de sonhos não realizados.

O pôr do sol ainda carrega a paz de um silêncio bom e a vontade de ficar olhando sem pensar em nada e pensando em tudo ao mesmo tempo. Certo dia, ele trouxe para a menina um presente maravilhoso, aguardado por anos, e que foi despedaçado em um meio de tarde de sol forte. O fim de tarde também lembra tomar sorvete vestida de short e camiseta sem pressa de chegar em casa. A garota admira tanto o poder do pôr do sol que já se permitiu ficar olhando para ele em cima de um viaduto sem se preocupar com assaltantes, carros desgovernados e pessoas malucas. Ele tem a pureza e a elegância de quem chega na hora certa, sabe o tempo exato de ficar e vai embora deixando claro que não é um abandono. Sempre volta.        

domingo, 15 de janeiro de 2012

Arrumar os seis lados



Ela ganhou um cubo desses de seis cores diferentes, uma em cada face, que você tem que embaralhar e conseguir organizar de novo. O famoso ‘Cubo mágico’. Coisa muito complicada. O objeto sempre foi do interesse dela e mesmo sendo tão barato a garota nunca se mobilizou para fazer a compra. Talvez seja mais uma dessas coisas que a gente quer e esquece que quer com a mesma intensidade. Daí só sente vontade quando vê por perto. E cinco minutos depois já caiu no esquecimento. É como a bolsinha colorida que ela vê na vitrine de uma loja perto do trabalho todos os dias. O dinheiro está na carteira, mas nada de sair de lá para a tal bolsa passar a ser dela. A menina não entende porque ainda não comprou e independente disso o objeto continua no mesmo cantinho, até que a vendedora resolva deixar escondido em uma outra prateleira ou alguém compre. 

Algo parecido com o filme ‘Kung Fu Panda 2’. Ela fez contagem regressiva para que ele chegasse ao cinema. Com o filme em cartaz, passou semanas planejando que iria assistir. Arrumou alguém que queria muito ir também, mas o passeio nunca aconteceu. Voltando à história do cubo, ele entrou na vida da garota de forma meio obrigatória. Ela não fez grande esforço, aliás, não fez esforço nenhum. Não planejou, não pediu a aprovação de ninguém nem definiu quando ele iria chegar. Mas o fato de não ter tido trabalho para a chegada do cubo não diminuiu sua complexidade. As cores continuam lá da mesma maneira só que agora inevitavelmente embaralhadas. E a dificuldade de estabelecer a ordem anterior entre elas é enorme. Por mais que se esforce, apenas um dos lados consegue ser o que era, enquanto os demais ficam ainda mais bagunçados. Sofrido também é saber que existem apenas duas alternativas: se contentar com o único lado que conseguiu arrumar ou ver ele sendo desconstruído quando tenta organizar tudo. Parece que ela já viu esse filme antes...         

domingo, 8 de janeiro de 2012

Fechar com chave de ouro



Era o último dia útil do ano. A menina saiu de casa para trabalhar às 7h30, mas a chuva já tinha começado seus trabalhos fazia um tempão. Parecia que tudo que estava nas ruas sentia certa inveja das nuvens e acabava jogando água em quem passava. Os carros e motos fizeram qualquer guarda-chuva se sentir inútil por não dar conta do que vinha de baixo e até dos lados. Falando nisso, em alguns momentos era até possível ver chuviscos cruzando o ar na horizontal, provando que nesses tempos malucos falar em chuva vindo na vertical não é algo tão obvio. Quando a garota chegou ao ponto de ônibus, encontrou alguém completamente encharcado. Ele não estava molhado porque a sombrinha não deu conta do recado ou esqueceu a capa de chuva em casa. Aliás, nem casa ele tinha. O cachorro preto, de pêlo brilhante por causa das gotas mantinha a boca aberta: mistura de sorriso com dentes faltantes e a língua de fora que sugeria cansaço. O rabo que não parava de balançar e os pequenos pulinhos que dava ao olhar para quem esperava o coletivo pareciam indícios de uma alegria misturada com espera. Uma espera bem esperançosa. 

Talvez o senhor que estava com o jornal nas mãos ou a mulher de botas bonitas pudesse ter um cantinho seco em casa para um cãozinho preto ficar. Os olhares constrangidos indicavam gente que não gostava de bicho e, por isso, queria ver aquele animal bem longe. Outros se sentiam incomodados por não poder fazer nada para ajudar. A menina se sentia angustiada já que a impossibilidade de proteger o cachorro da chuva, da fome e de outros perigos da rua se misturava às outras angustias que ela carrega na vida. Em meio ao silêncio constrangedor, uma senhora retirou da bolsa o sanduiche que seria o lanche da tarde e entregou a aquele focinho abandonado. Um gesto pequeno, simples, mas agradecido com a grandiosidade de um olhar aliviado por satisfazer o estômago.  A garota também não resistiu e agradeceu à senhora, que ficou sem entender. A menina estava contente não apenas porque algo tinha sido feito por um ser tão frágil. A gratidão era também por ter encontrado uma pessoa de coração bom.